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Sair modo imersivo
A pobreza e a desigualdade estão a aumentar?
Os dados mais recentes do INE mostram que a pobreza e a desigualdade voltaram a diminuir depois do choque da crise da Covid-19. Mas o aumento da inflação traz consigo novas dificuldades. Uma análise à situação social do país, onde cerca de um quarto da população se encontra em situação de pobreza ou exclusão social.


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A EVOLUÇÃO RECENTE DOS INDICADORES DE POBREZA, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO SOCIAL

Pobreza e Desigualdade

 

Indicadores de pobreza e desigualdade retomam ciclo descendente, mas há novas preocupações com efeitos da inflação nas condições de vida 

A evolução dos principais indicadores de desigualdade, pobreza e exclusão social recentemente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, a partir do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) realizado em 2022 evidencia alguns sinais contraditórios que devem ser lidos com um cuidado adicional. 

Uma parte desses sinais contraditórios revelados pelo ICOR 2022 resulta dos diferentes períodos de observação das suas principais variáveis. Enquanto os indicadores de nível de rendimento, de desigualdade e de pobreza refletem a realidade de 2021 os indicadores de privação material e social e de exclusão social traduzem a realidade existente na data do inquérito, isto é, de março a junho de 2022. 

Se em períodos de relativa estabilidade socioeconómica a coexistência destes dois períodos de observação da realidade transmitida pelo ICOR não coloca grandes problemas na análise em alturas mais conturbados do ponto de vista social a leitura torna-se mais complexa. Foi o que aconteceu com o ICOR 2022. Os dados do rendimento, da pobreza e da desigualdade refletem a recuperação pós pandemia verificada em 2021 enquanto os indicadores de privação material e social referentes a 2022 permitem antecipar, ainda que de forma parcial e embrionária, a erosão das condições de vida das famílias provocada pelo aumento do nível de preços. 

 

A redução das principais dimensões da pobreza 

O facto mais saliente dos resultados do ICOR 2022 é a redução expressiva dos principais indicadores de pobreza em 2021. O ciclo descendente dos principais indicadores, que tinha sido severamente interrompido em 2020, parece retomar o seu caminho.  

A taxa de pobreza desceu dois pontos percentuais, passando de 18,4% em 2020 para 16,4% em 2021. Nesse último ano menos 197 mil pessoas encontravam-se em situação de pobreza comparativamente com o ocorrido no ano anterior, no auge da crise pandémica. A intensidade da pobreza (que avalia quão pobres são os pobres) diminuiu 5,4 pontos percentuais, de 27,1% para 21,7%. Esta diminuição traduz uma forte melhoria da situação económica das famílias e dos indivíduos mais pobres. O valor da intensidade da pobreza registado em 2021 constituí mesmo o valor mais baixo da série iniciada em 2003. 

O desagravamento da incidência da pobreza refletiu-se em todos os grupos etários. A taxa de pobreza da população idosa diminuiu 3,1 pontos percentuais (pp) passando de 20,1% em 2020 para 17% em 2021. A incidência da pobreza das crianças e jovens reduziu-se em 1,9 pp atingindo em 2021 o valor de 18,5%. A evolução do nível de pobreza ocorrida nestes dois grupos etários mais vulneráveis da população portuguesa é muito positiva, anulando na totalidade os impactos da crise sentidos no ano anterior. O valor da taxa de pobreza das crianças e dos jovens é mesmo o mais baixo registado neste grupo etário desde 2003.  

 

Contudo, o nível de pobreza das crianças e dos jovens mantém-se ainda acima do valor conjunto nacional (16,4%), revelando a vulnerabilidade destes dois grupos etários às diferentes dimensões deste problema. A situação das crianças e jovens subsiste como um fator de forte preocupação social, com uma incidência da pobreza que é superior em dois pontos percentuais à média nacional. 

A análise incidência da pobreza por tipo de família permite identificar os núcleos familiares mais vulneráveis à pobreza monetária. Em 2021 assistiu-se a diminuição da taxa de pobreza de praticamente todos os grupos sociais analisados, sendo essa redução de 2,4 pp nas famílias sem crianças e de 1,7 pp nos agregados familiares com crianças. 

As famílias monoparentais e as famílias com três ou mais crianças dependentes apresentavam as taxas de pobreza mais elevadas (28,0% e 22,7%, respetivamente) apesar de este último grupo ter registado um decréscimo muito significativo desta taxa. Os dados do ICOR 2022 confirmam assim que, apesar da melhoria registada, estes dois grupos permanecem como as famílias mais vulneráveis às situações de pobreza. 

A população desempregada é um grupo social extremamente vulnerável à pobreza. A incidência da pobreza neste grupo, apesar de ter diminuído 3,1 pp face a 2020, é das mais elevadas entre a população portuguesa (43,4%). O desemprego permanece, assim, um dos principais fatores de pobreza. 

A proporção da população empregada que vive em situação de pobreza diminuiu de 11,2% para 10,3%. A existência de uma percentagem tão expressiva de indivíduos que apesar de terem emprego não conseguem evitar a pobreza não pode deixar de constituir um dos fatores mais preocupantes da situação social do país. 

A incidência da pobreza na população reformada foi aquela que mais se reduziu, passado de 18,1% em 2020 para 14,9% em 2021, um valor inferior ao do conjunto da população residente no país (16,4%). 

A quebra na incidência da pobreza em Portugal em 2021 repercutiu-se de forma desigual nas diferentes regiões do país. As regiões Norte, Centro, Lisboa e Alentejo registaram uma diminuição da taxa de pobreza, com particular destaque para a região Centro, onde este indicador teve uma descida acentuada (4,3 pontos percentuais). O Algarve foi a única região do continente onde a incidência da pobreza registou um ligeiro aumento, resultante da maior intensidade e persistência da crise económica nesta região durante a pandemia. 

As regiões autónomas dos Açores e da Madeira permanecem como as mais pobres do país, com taxas de pobreza superiores a 25%. Nos dois arquipélagos, a incidência da pobreza também aumentou em 2021, fixando-se em 25,1% nos Açores e em 25,9% na Madeira. 

 

Manutenção dos rendimentos familiares e ligeira diminuição da desigualdade 

Em 2021 o rendimento médio por adulto equivalente teve uma ligeira contração em termos reais, passando de 1107 euros mês para 1096 euros. Este decréscimo do rendimento real das famílias (inferior a 1%) é explicado pelo ligeiro crescimento nominal positivo verificado (de 1093 euros mês para 1096) e pela inflação que, em 2021, se situou em 1,3%. 

O perfil de evolução do rendimento equivalente das famílias não foi porém homogéneo. De acordo com os dados publicados pelo INE o valor do percentil 10 (a fronteira que separa os rendimentos dos 10% mais pobres das restantes famílias) aumentou em termos reais cerca de 9% o que certamente contribuiu para a melhoria da situação económica das famílias mais vulneráveis. Esta correção das assimetrias na distribuição dos rendimentos [retirei familiares], assente num aumento mais expressivo dos recursos das famílias mais pobres comparativamente ao conjunto da população, desempenhou um papel importante na diminuição dos indicadores de pobreza já analisados. Teve igualmente um efeito estabilizador na evolução do limiar de pobreza cujo valor mensal diminuiu ligeiramente face ao ano anterior. Se em 2020 a linha de pobreza era de 554 euros/mês em 2021 esse valor reduziu-se para 551 euros. 

A consequência mais expressiva da evolução dos rendimentos familiares em 2021 foi a ligeira diminuição dos principais indicadores de desigualdade. O coeficiente de Gini sofreu um desagravamento de um ponto percentual, fixando-se no valor de 32%. Este resultado traduz uma recuperação da desigualdade face ao acréscimo verificado em 2020 mas foi ainda insuficiente para repor os valores que existiam antes da crise (31,2% verificado em 2019). 

Uma outra forma de olhar para a evolução da desigualdade é confrontar a distância que separa o rendimento médio dos indivíduos na base da escala de rendimento com o daqueles que se situam no topo dessa escala. Os índices S80/S20 e S90/S10 permitem-nos medir a desigualdade entre os extremos da distribuição do rendimento por adulto equivalente. A evolução destes indicadores é semelhante à observada para o coeficiente de Gini. Em 2021, o rendimento médio por adulto equivalente dos 10% mais ricos era cerca de 8,5 vezes superior ao dos 10% de menores rendimentos. 

Tal como verificado com o coeficiente de Gini a evolução destes indicadores reflete um desagravamento da desigualdade ocorrido em 2021 que contudo não foi ainda suficientemente amplo para repor os valores anteriores à crise provocada pela pandemia. 

O nível de desigualdade, medido pelo coeficiente de Gini, varia entre as várias regiões do país. O arquipélago dos Açores, com um valor de 34,8% era a região com maior assimetria na distribuição dos rendimentos, cerca de 2,8 pontos percentuais acima da média nacional. 

Todas as regiões do continente com exceção do Algarve registaram um decréscimo da desigualdade. O Algarve, provavelmente como resultado dos efeitos mais acentuados e prolongados da crise pandémica, viu o seu nível de desigualdade crescer de cerca de 1,8 pontos percentuais.  

As regiões autónomas dos Açores e da Madeira sofreram igualmente em 2021 um agravamento da desigualdade, retomando a sua posição tradicional como as regiões mais desiguais do país. 

 

Privação material e social diminuiu, mas acesso a alimentos e energia antecipa preocupações 

O sistema estatístico europeu procedeu a uma revisão dos indicadores de privação, no âmbito do sistema de monitorização social da estratégia Europa 2030. Os anteriores nove indicadores de privação foram alargados para 13 indicadores de privação material e social. 

De forma a assegurar a comparabilidade destes novos indicadores o INE recalculou as estimativas de privação material e social desde 2016. 

Em 2022 quer o indicador de privação material e social quer o de privação material e social severa registaram uma diminuição, contrariando o agravamento da sua subida ocorrido em 2021 e retomando a tendência de descida destes índices que se registava desde 2016. 

A comparação dos valores de 2021 e de 2022 dos 13 indicadores de privação material e social, revela quais as situações em que é mais fortemente sentida a privação das famílias, constituindo assim uma informação sobre as condições de vida da população que é complementar à obtida através dos indicadores de pobreza monetária. 

Entre os indicadores que traduzem uma situação de vulnerabilidade material e social mais elevada em 2022 destacam-se: 37,2% não têm capacidade para pagar uma semana de férias, por ano fora de casa (36,6% em 2021); 36,3% dos indivíduos declara a impossibilidade de substituição do mobiliário usado (37,9 em 2021); 29,9% dizem que não têm capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada próxima do valor da linha de pobreza (31,1% em 2021); 17,5% declaram não terem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida (16,4% em 2021). 

Estes indicadores de privação material e social, são aqueles que, de uma forma mais imediata, refletem os efeitos da subida dos preços dos bens e serviços sobre as condições de vida das famílias, contrariamente aos que se verifica com os indicadores de pobreza.  

Apesar do ICOR 2022 se ter realizado no primeiro semestre de 2022, antes da forte aceleração da inflação na segunda metade do ano, alguns dos itens considerados podem já refletir alguma contração dos rendimentos reais das famílias associados à subida dos preços. Para além do já referido agravamento da percentagem de famílias que não tem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida saliente-se igualmente o aumento do número de pessoas que viviam sem capacidade financeira para ter uma refeição de carne ou de peixe pelo menos de 2 em 2 dias. Este indicador subiu 0,6 pp, passando de 2,4% em 2021 para 3,0% em 2022. 

O agravamento, ainda que ligeiro, destes indicadores em 2022 não pode deixar de constituir um fator de preocupação quanto à incidência dos efeitos da subida acentuada dos preços dos bens de primeira necessidade sobre as famílias e os indivíduos em situação de maior vulnerabilidade. 

Pelo seu profundo impacto social, saliente-se ainda que 6,1% dos inquiridos pelo INE revelam possuir atrasos, motivado por dificuldades económicas, em algum dos pagamentos regulares relativos a rendas, prestações, créditos, etc. 

Em 2022, 2 milhões de pessoas (19,4% da população) encontravam-se em situação de pobreza ou de exclusão social em Portugal.

Um quinto da população mantém-se em situação de pobreza ou exclusão social em 2022 

As alterações ocorridas nos indicadores de privação refletem-se igualmente na taxa de pobreza ou de exclusão social que é o indicador síntese utilizado pelo sistema estatístico da União Europeia no âmbito da estratégia Europa 2030 para caracterizar as famílias e as pessoas que se encontram em pelo menos uma das três situações seguintes: em situação de pobreza monetária; em situação de privação material e social severa; em situação de afastamento do mercado de trabalho, traduzida no facto de, num dado agregado, os indivíduos adultos entre os 18 e os 59 anos trabalharam em média menos de 20% do tempo de trabalho possível (baixa Intensidade laboral).  

Em 2022, 2 milhões de pessoas (19,4% da população) encontravam-se em situação de pobreza ou de exclusão social em Portugal. Este valor corresponde ao valor mais baixo registado em Portugal desde o início da nova série em 2016, traduzindo uma expressiva recuperação dos efeitos da pandemia e retomando o ciclo descendente deste indicador interrompido em 2021. Entre 2021 e 2022 cerca de 300 mil pessoas abandonaram a situação de pobreza e exclusão social. 

Também no que concerne a este indicador se verificam fortes assimetrias regionais. O valor mais baixo da taxa de pobreza ou de exclusão social verifica-se na região de Lisboa (13,6%) enquanto que os arquipélagos dos Açores e da Madeira apresentam os valores mais elevados (ambos com 29,6%) são as regiões nacionais com valores mais elevados neste indicador. 

Apesar de todas as regiões do Continente terem evidenciado uma diminuição deste indicador em 2022 o agravamento da taxa de pobreza ou exclusão social ocorrida nas duas regiões autónomas contribuiu para um acentuar das assimetrias regionais deste indicador. 

 

Impacto das prestações sociais na redução da pobreza em 2021 ainda é limitado 

A importância das prestações sociais na redução da incidência da pobreza pode ser observada através da comparação das “taxas de pobreza” antes e após transferências sociais.  

Tomando como referência o ano de 2021, é possível verificar que a incidência da pobreza no conjunto da população foi de 16,4%, mas que, mantendo inalterado o montante em euros que define a linha de pobreza e subtraindo ao rendimento disponível das famílias, as transferências sociais relacionadas com a doença e incapacidade, família, desemprego e inclusão social, a incidência passaria para 21,5%.  

As transferências sociais possibilitam, assim, uma redução da incidência da pobreza em 5,1 pontos percentuais. Este efeito redutor da pobreza das transferências sociais aumentou face ao valor verificado em 2020 (4,6 pp) mas mantém-se aquém do ocorrido antes da crise em 2019 (5,7 pp).  

De igual forma, é possível verificar o impacto das pensões na redução da incidência da pobreza. Essa redução é de 26,9 pontos percentuais, sendo notória a importância desta fonte de rendimento nos recursos das famílias. 

*** 

Os dados do ICOR de 2022 permitem tirar algumas ilações sobre a evolução recente das condições de vida, da desigualdade, da pobreza e da exclusão social em Portugal, mas trazem igualmente novas preocupações sobre o futuro próximo da situação social no país. 

Um primeiro resultado é o de que os efeitos extremamente adversos que a pandemia provocou nos níveis de pobreza e de desigualdade em 2020 foram, pelo menos parcialmente, revertidos e o seu ciclo descendente foi retomado em 2021. A redução da incidência e da intensidade da pobreza, o recuo das taxas de pobreza dos grupos mais vulneráveis e a ligeira diminuição da desigualdade são indicadores claros de uma melhoria das condições de vida da população.  

No entanto, todos estes indicadores são baseados na distribuição dos recursos monetários das famílias. O ano de 2022 ficou marcado pelo regresso ao nosso país de elevados de níveis de inflação, cujo impacto negativo sobre as famílias somente são captados de forma muito parcelar por estes indicadores de pobreza e de desigualdade. 

Os indicadores de privação material e social inquiridos pelo ICOR permitem identificar de forma mais precisa os efeitos da subida dos preços nas condições de vida da população, através da análise da sua capacidade de satisfação de um conjunto de necessidades básicas, como o pagamento das despesas com a habitação, a possibilidade de ter uma alimentação adequada ou de usufruir de uma vida social minimamente satisfatória.  

No entanto, dado que o inquérito se realizou no primeiro semestre de 2022 e o forte agravamento dos preços ocorreu na segunda metade do ano, o ICOR 2022, somente de forma muito parcelar captou o essencial dos efeitos negativos associados ao aumento da inflação. Assim, e apesar do indicador agregado de privação material e social severa ter diminuído em 2022, o aumento de alguns dos itens que o compõem deixa um claro sinal de alerta sobre este novo fator de fragilização social das famílias mais desfavorecidas. 

Esta nova realidade implica igualmente que, no futuro, se tenha de analisar os diferentes indicadores que traduzem as condições de vida das famílias de uma forma mais integrada, complementando a análise da distribuição dos rendimentos com a efetiva capacidade de acesso das famílias a bens e serviços essenciais.

Nesse contexto, é importante salientar que alguns dos efeitos mais negativos e persistentes da pandemia não tiveram a ver com a distribuição do rendimento monetário, mas sim com o forte agravamento das desigualdades no acesso à educação e à saúde. 

Por último, a emergência desta nova realidade também coloca novas exigências às políticas públicas que terão que conjugar medidas visando a garantia de recursos mínimos com a necessidade de assegurar o acesso aos bens e serviços essenciais.

É esta a linha orientadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza aprovada pelo Governo. Mas a sua aprovação é um ponto de partida e não chegada. É preciso implementá-la de forma a assegurar uma efetiva recuperação económica que assegure um crescimento e um desenvolvimento inclusivo com menos desigualdade e menos pobreza. 

Carlos Farinha Rodrigues
Professor do ISEG, Universidade de Lisboa

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