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A humanidade está numa relação com a tecnologia: É complicado

«O mundo visto a partir de Silicon Valley é uma plataforma aberta onde os cidadãos abdicam da privacidade em troca do conformismo de ideias e os negócios servem para gerar valor, não empregos», diz Diogo Queiroz de Andrade neste artigo para o projeto Fronteiras XXI.
22 min

Em 2010 uma onda de esperança e optimismo varreu o mundo. A Primavera Árabe, o movimento de democratização de países muçulmanos da baía do Mediterrâneo, prometeu revolucionar a esperança de uma geração inteira de muçulmanos. Em lugar de destaque estavam as redes sociais, tidas como responsáveis pela mobilização das massas que exigiam mudanças. Foi o que bastou para esboçar uma nova ordem social, global, a partir de Silicon Valley.

Quando no ano seguinte a oferta pública de acções do Facebook rendeu 5 mil milhões, o presidente-executivo Mark Zuckerberg enviou uma carta aos investidores que mais parecia um manifesto revolucionário: “Ao dar às pessoas o poder de partilhar, oferecemos a oportunidade de fazer com que as vozes de todos sejam ouvidas a uma escala surpreendente. Estas vozes vão crescer em número e em volume. Não vão poder ser ignoradas. Esperamos que, a seu tempo, os governos se tornem mais atentos aos problemas que as populações levantam directamente, substituindo os intermediários que são controlados por alguns”.

Desta forma, defendeu o co-fundador do Facebook, “acreditamos que vão surgir em todos os países líderes que são pro-internet e que vão lutar pelos direitos do seu povo, incluindo o direito de partilhar o que querem e o direito de aceder a toda a informação que os cidadãos queiram partilhar entre si.”

Ao mesmo tempo, a Google repetia o seu mantra “Não fazer mal” para reforçar a distinção face às práticas das companhias tecnológicas do passado, a começar pela Microsoft. Era o apogeu da utopia tecnológica que, conjugada com a globalização, iria trazer concórdia, democracia, liberdade e prosperidade ao mundo todo.

A ideologia, profunda como um tweet, não durou cinco anos. E o que se revelou neste período foi suficiente para demonstrar que, em vez de terem um impacto positivo, as redes sociais e o status quo tecnológico são forças do mal.

Os últimos anos trataram de apagar as ilusões sobre a bondade das plataformas tecnológicas que usamos. Sempre que foi preciso escolher entre crescimento e ética, as empresas que dominam a internet foram lestas a escolher o lucro, provocando uma série de consequências imprevisíveis com impacto directo no mundo que temos hoje. O que se segue é uma viagem por essas decisões, tentando explicar como o mundo é visto a partir de Silicon Valley.

Uma ideologia monopolista

Google e Facebook nascem ao mesmo tempo, a partir das maiores universidades norte-americanas: Stanford, na Califórnia, deu origem ao Google (hoje Alphabet); Harvard acolheu Mark Zuckerberg e o seu “The Facebook”.

Jonathan Taplin, autor do livro “Move Fast and Break Things: How Google, Facebook and Amazon Cornered Culture and Undermined Democracy“, norteia o alinhamento ideológico dos fundadores destes gigantes tecnológicos em três eixos: na ideia de destruição criativa do economista Joseph Schumpeter, no idealismo optimista da filósofa Ayn Rand e no pragmatismo monopolista do capitalista Peter Thiel.

Este líder da alta finança foi o primeiro grande investidor do Facebook, mas foi também quem forneceu o substrato ideológico para estas empresas com ambições monopolistas alicerçadas numa economia informal que quebram todas as regras e usam a lei do mais forte para esmagar os concorrentes.

Peter Thiel é também o homem que hoje está ao lado de Donald Trump como principal conselheiro estratégico da Casa Branca no que toca à tecnologia – tendo ainda pago do seu bolso um imenso processo de difamação que levou à destruição do Gawker, um polémico site noticioso norte-americano.

Jonathan Taplin explica que o problema é cultural, mas é sobretudo económico e tem ligações profundas à actual era de desigualdade em que vivemos: “Contrariamente ao que os deterministas tecnocratas querem que acreditemos, a desigualdade não é o resultado inevitável da tecnologia e da globalização, ou mesmo da distribuição desigual da inteligência. É um resultado directo de os responsáveis políticos agirem, desde o crescimento da Internet, como se as regras que se aplicam a toda a economia não se aplicassem aos monopólios da Internet.”  Segundo o escritor, “relativamente à regulação das indústrias da Internet tudo é ignorado: impostos, regulamentos da concorrência, legislação de propriedade intelectual. Os donos do monopólio digital exigem rédea solta para serem eficientes.”

Mais à frente, Taplin contextualiza o drama da economia americana: “O problema é que a imensa produtividade destas empresas, associada aos seus preços oligopolistas, gera um vasto excedente financeiro que ultrapassa a capacidade de absorção da economia através dos seus mecanismos normais de consumo e investimento. É por esta razão que os saldos da Apple e da Google são, respectivamente, de 150 mil milhões e 75 mil milhões de dólares. Estas empresas não conseguem encontrar oportunidades suficientes para reinvestir porque já existe uma sobrecapacidade em muitas áreas e porque a sua produtividade é tão elevada que não são criados novos postos de trabalho nem encontrados novos potenciais clientes. Recorrendo às palavras de Lawrence Summers, antigo Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, «a falta de procura cria falta de oferta». Em vez de investirem para criar novos postos de trabalho, as empresas usam o seu dinheiro para readquirir acções, o que apenas aumenta a desigualdade económica.”

Ao mesmo tempo que viravam o sistema económico-financeiro norte-americano ao contrário, as majors da tecnologia trataram de exportar as suas práticas anti-concorrenciais.

Na Europa foram recebidas com burocracia e legislação que, ainda assim, só agora começou a ser aplicada. Em Outubro, a Comissão Europeia exigiu que o Luxemburgo cobrasse 250 milhões de euros em impostos não reclamados à Amazon. Em Junho, aplicou-se uma multa de 2,42 mil milhões de euros à Google por manipular os resultados do motor de pesquisa para favorecer as empresas parceiras – e prejudicar os consumidores. Já sobre 2016, a Comissão fez as contas e apresentou à Apple uma conta de impostos em atraso que chegou a 14,5 mil milhões de euros.

Estes casos estão longe de ser únicos. Quer a Google quer o Facebook são os novos donos do negócio publicitário global, com a maioria das estimativas a dar a estes dois gigantes uma quota de mercado na ordem dos 80% – o que ajudou a colocar todos os meios de comunicação numa crise sem precedentes.

Na Europa, ambos concentram as suas operações nos países com melhor taxa de imposto (Irlanda e Luxemburgo), esvaziando os restantes países de uma taxa tributária relevante, para além de diversos mecanismos de fuga a outras taxas, como as alfandegárias.

Em Outubro deste ano, dez ministros das Finanças a nível europeu assinaram uma declaração em que se comprometem a estudar os mecanismos mais eficientes para taxar devidamente estas empresas, que se arriscam agora a ter de pagar impostos especiais – sob o argumento de estar em causa a eficiência económica do continente. E é de notar que, ao mesmo tempo que enriquecem brutalmente a nível global, estas empresas deixam pouca marca no terreno: pouco investem para lá das suas próprias plataformas e a taxa de criação de empregos fora da Califórnia é quase nula. A economia digital traz desafios difíceis de enfrentar.

 

O ódio como prática corrente

Acresce a que o problema não se limita ao impacto destas novas empresas na economia norte-americana e global. Como qualquer ferramenta, as plataformas podem ser usadas para o bem e para o mal.

O activismo digital é uma das boas utilizações destas plataformas. Subjacente ao seu conceito está a ideia originalmente propalada por Zuckerberg de que cada voz é única e que muitas vozes juntas conseguem falar bem alto – e isso tem acontecido.

Várias plataformas de direitos humanos têm ganho notoriedade, muitas campanhas motivadas por valores nobres têm-se feito ouvir, várias minorias são hoje mais respeitadas – graças a uma utilização inteligente das redes sociais.

O novo espaço público onde tudo se discute é o mesmo local onde se activam as consciências colectivas, pelo que as redes sociais se tornam o espaço privilegiado para promover campanhas sociais.

O reverso desta medalha está no discurso de ódio que aproveita o anonimato relativo da internet para propagar mensagens de violência e extremismo. Milhares de pessoas são diariamente insultadas e atacadas nas redes sociais apenas por terem uma opinião, uma ideia, que vai contra a vontade de outra – e, muitas vezes, as próprias redes servem de caixa de ressonância desse mesmo eco.

Na versão mais benigna da utilização do ódio, os utilizadores da internet revelam-se misóginos, enquanto no modelo mais extremista se tornam nazis e adeptos de limpezas étnicas à imagem das conduzidas por Ratko Mladic na Bósnia.

Dois casos ocorridos em 2015 merecem destaque, pelo grande impacto que tiveram, e ambos envolvem mulheres como vítimas. O primeiro tem como protagonista Ellen Pao, a CEO do Reddit que decidiu limitar a liberdade de expressão na plataforma ao impor limites à forma como eram partilhados conteúdos de explícita violência sexual (incluindo sobre menores). Acabou despedida, depois de uma violenta campanha em que foram usados todos os expedientes possíveis para a denegrir – mas a censura ficou e hoje ninguém a discute no Reddit.

O outro caso ficou conhecido como Gamergate, e envolveu uma programadora independente de jogos, Zoe Quinn. A polémica visou desacreditá-la mas acabou por revelar o grau de machismo e transfobia impregnado na comunidade de jogos.

 

O negócio da identidade

Independentemente das utilizações benéficas, é preciso ter sempre presente que estas plataformas são negócios. A lógica das plataformas sociais sempre foi simples e conhecida: fornecer serviços gratuitos capazes de criar o hábito no utilizador.

Com a crescente utilização vem a entrega de mais e mais dados da vida pessoal, que permitem individualizar cada consumidor num pacote de informações muito úteis para direccionar publicidade a produtos e serviços. Isto significa que, quando utilizamos uma rede como a da Google ou o Facebook ou o Twitter, nós somos o produto.

Estas plataformas servem para ligar o produto (os utilizadores) que se predispõem a receber informação (anúncios) paga por entidades que usam as informações para melhor seduzir potenciais compradores.

O segredo para fazer crescer o número de utilizadores é fornecer de forma gratuita ferramentas úteis (e potencialmente viciantes) para um quotidiano cada vez mais digital. Daí as ferramentas de comunicação como os e-mails e os chats, as áreas de armazenamento de informação e de partilha de conteúdos.

O negócio, desde que gerido com transparência, seria pouco perturbador. Mas a transparência não existe e a opacidade é a regra. Não se sabe que dados são armazenados por estas plataformas, não se conhecem os seus algoritmos e é impossível entender os mecanismos intrincados das bases de dados destas empresas.

De vez em quando, lá aparece uma notícia que confirma os piores receios de armazenamento e cruzamento de informação potencialmente ilegal: que os smartphones Android enviam a localização do utilizador para a Google mesmo que este tenha desactivado o serviço, ou, pior, que o Facebook oferece como recomendações de amigos pessoas que não se deveriam conhecer – como clientes do mesmo psiquiatra ou familiares distantes sem qualquer relação ou conhecimento entre si.

Não há forma de estabelecer estes contactos sem que se proceda à recolha e armazenamento de informação que não é assumida pelo Facebook, pelo que estes serviços globais deixam muito a desejar em termos de transparência. E quando é a segurança pessoal que está em causa, é ainda mais perigoso confiar nestas plataformas.

Douglas Rushkoff, um dos mais influentes pensadores contemporâneos da cultura digital, dedicou um livro às plataformas digitais onde detalha a importância de não assistir passivamente a estes desenvolvimentos. Aqui aborda especificamente a questão da privacidade: “Os investigadores não querem saber o que uma determinada informação representa sobre si enquanto indivíduo, mas apenas o que esta revela quando comparado com a informação correspondente do perfil global. Combinando isto com a capacidade da Internet em monitorizar utilizadores individuais, temos uma solução de marketing verdadeiramente personalizada. Em vez de comprarem anúncios que todos os visitantes de uma página da Web vêem, os anunciantes podem limitar os seus gastos com publicidade para o seu público-alvo”.

Rushkoff explica que é esta mesma tecnologia que faz com que nos apresentem online anúncios de produtos de sites por onde navegamos. Só que neste caso, em vez de ser usado o nosso histórico de navegação, são usadas as informações dos nossos perfis.

“O mesmo tipo de informações pode ser utilizado para prever a probabilidade de quase tudo – a probabilidade de um eleitor mudar de intenção de voto ou a probabilidade de um adolescente mudar de orientação sexual”, alerta.

Todos os dias o Facebook utiliza um critério discricionário para censurar conteúdos. Que o faça com critérios transparentes e objectivos é legítimo, mas já é dúbio que limite o direito à liberdade de expressão de minorias.

Quando, no último Verão, a minoria Rohingya começou a ser perseguida na Birmânia, os grupos de activistas no Facebook começaram a ser activamente censurados, rapidamente seguidos de jornalistas e trabalhadores de direitos humanos que abordavam o mesmo problema.

O mesmo se passa na Turquia, onde o Facebook e o Twitter exerceram uma censura activa sobre os seus utilizadores – pagando assim o preço por actuar num mercado que sempre foi visto como uma porta de entrada para o mundo árabe, mas cujas credenciais democráticas deixam muito a desejar.

Idem para o Paquistão e também para a Índia, onde os problemas do Facebook já são antigos – e que começaram quando Zuckerberg quis oferecer uma “internet para os pobres”, que mais não era que um ecossistema fechado no Facebook onde todos poderiam aceder de graça e sem consumir dados de telecomunicações, que o Governo de Deli recusou liminarmente e cujo plano tem servido para expor a falta de vergonha desta rede social.

E ninguém sabe até onde a Google vai ceder para voltar a ganhar a confiança dos líderes chineses, que baniram a empresa em 2010 e estão agora a avaliar o seu regresso. Idem para o Facebook, cujo líder Zuckerberg continua a aprender chinês para satisfazer os senhores de Pequim, ainda sem sucesso. Uma coisa é certa: qualquer pesquisa sobre Tianamen vai continuar a não dar resultados na internet dentro das fronteiras chinesas. Outra coisa é certa: para as multinacionais tecnológicas americanas, o lucro conta muito mais do que os princípios.

Não é sequer novidade, visto que o exercício da censura é frequente nestas plataformas. Quando o grupo de reflexão New America Foundation decidiu, em Agosto, defender um documento a favor dos mercados livres em que apoiava a multa da União Europeia à Google, o seu presidente foi liminarmente despedido. A razão? Esta Fundação é sustentada pela Google – que aprecia a liberdade de expressão desde que esta não choque com os seus interesses. Só nesta década, a multinacional tecnológica já patrocinou mais de 200 documentos de académicos e fundações para influenciar o seu negócio, para além de gastar milhões a sustentar exércitos de lobistas em Washington, Bruxelas e noutras capitais do mundo.

 

A ignorância digital

Tristan Harris lidera um grupo de antigos funcionários das grandes empresas tecnológicas que se empenham em alertar para os perigos de confiar demasiado nas redes sociais.

Ele próprio ex-funcionário da Google, assume-se hoje como um paladino dos direitos dos cidadãos e quer obrigar as grandes empresas a mudar de estratégia. Reconhecendo que um conjunto de engenheiros, na maioria brancos, cristãos, de classe média alta, controlam o código base das redes e decidem sozinhos o que mil milhões de pessoas devem ver na internet, tem exigido mais transparência.

Mas Harris está longe de ser o único, com uma crescente denúncia dos mecanismos que as redes usam para criar dependências dos seus serviços e forçar ainda maior tempo de utilização.

O problema maior é o da “bolha filtrada”, termo cunhado pelo activista político Eli Pariser para explicar a forma como o Facebook explora os nossos dados para nos dar mais daquilo que gostamos, fechando-nos efectivamente num círculo que nos torna primeiro imunes a opiniões diferentes e depois invisíveis a essas mesmas opiniões.

A isto acresce que o ser humano é naturalmente avesso a ideias que contrariem a própria mundividência, pelo que para crescer estas plataformas precisam de evitar o atrito de forma a estimular que se passe mais tempo nelas, e que se partilhe mais conteúdo com o qual naturalmente concordamos.

Ao mesmo que se formam hábitos que isolam as ideias, criamos mecanismos que propiciam a ignorância. Os anos da economia digital estão a coincidir com o ressurgimento de uma forma grave de obscurantismo, que é a recusa em reconhecer a opinião do especialista.

Tom Nichols, professor em Harvard (e cinco vezes campeão imbatível do Jeopardy), escreveu um livro chamado The Death of Expertise em que é muito eloquente na descrição do fenómeno: “A questão não está apenas na falta de conhecimento básico que o crescente número de pessoas leigas tem, mas também na rejeição de regras fundamentais de evidência e na recusa de aprenderem a apresentar um argumento lógico. Quando tal acontece, arriscam-se a apagar séculos de conhecimento e ameaçam as práticas e os hábitos que nos permitiram desenvolver novos conhecimentos”.

Para Nichols, a questão vai muito mais além de um cepticismo em relação aos especialistas: “Temo que estejamos a testemunhar a morte do próprio ideal do especialista, um colapso da distinção entre profissionais e leigos, alunos e professores, conhecedores e sabichões – ou seja, entre aqueles com algum tipo de reconhecimento numa área do conhecimento e aqueles que não têm nenhum – patrocinado pelo Google, pela Wikipedia e pelos blogues.”

O problema coloca-se com maior premência na era digital, em que tudo parece mais superficial. “Se os cidadãos não se derem ao trabalho de adquirir o nível de literacia básico para as questões que afectam as suas vidas, abdicam do controlo que podem ter sobre essas questões, quer queiram quer não”, defende. “E quando os eleitores perdem o controlo sobre estas decisões importantes, arriscam que a democracia seja monopolizada por demagogos ignorantes ou que as instituições democráticas caiam, num declínio silencioso e moral, nas mãos da tecnocracia autoritária”.

Para o professor de Harvard, a “erudição no ciberespaço” não é, por isso, mais do que “navegar até chegar à conclusão que se procura”,  num processo de clique atrás de clique, onde se confundem a presença num website com a legitimidade de um argumento.

O problema agrava-se, explica, porque a Internet “pode estupidificar” os utilizadores menos conhecedores de um determinado assunto: “O acto de pesquisar informações faz com que as pessoas sintam que aprenderam algo quando, na verdade, é mais provável que estejam a absorver ainda mais informações que não conseguem compreender.”

Não espanta, por isso, que “ embora muitas histórias na Internet sejam falsas ou imprecisas, a notícia que se torna viral é aquela, no meio de milhões, em que o Google acertou e o especialista errou”, argumenta.

Um dos maiores e mais conhecidos alertas para “a morte iminente do conhecimento” foi a vitória de Trump na corrida às presidenciais de 2016. Segundo  Nichols foi o resultado de “uma campanha de um homem só contra o conhecimento estabelecido”. E, sem surpresas, Trump foi eleito com o apoio dos que têm menos habilitações. “«Adoro todos os que têm um baixo nível de formação académica», afirmou Trump após vencer as primárias no Nevada – a adoração era claramente recíproca. Em Trump, os norte-americanos que acreditam em forças obscuras que lhes dão cabo da vida e que qualquer líder nacional com um mínimo de capacidade intelectual é suspeito, encontraram um patrono.”

 

A verdade da mentira

É uma suprema ironia que, quando temos mais conhecimento à mão, mais recusemos as possibilidades de aprender. Embora o processo de degradação do conhecimento tenha andado a par do crescimento das redes sociais, ele não é necessariamente coincidente. Mas não é difícil ver o início como o grande momento de viragem.

Depois do ataque da Al-Qaeda às Torres Gémeas, o desnorte da liderança norte-americana foi rápido a encontrar um culpado – Saddam Hussein – e a forjar provas contra ele.

The New York Times, o bastião máximo do jornalismo independente, defendeu essas provas como verdadeiras; o General Colin Powell testemunhou na Assembleia Geral das Nações Unidas em como tinha na sua mão provas da existência de armas de destruição maciça no Iraque; o mundo acreditou e uniu-se no ataque a Saddam: A Cimeira das Lajes, de muito má memória, reuniu Durão Barroso, José Maria Aznar e Tony Blair com George Bush, para que todos juntos mentissem ao mundo e lançassem uma guerra de proporções catastróficas para o Médio Oriente e para a economia global.

A fé na classe política ocidental, que já era pouca, ruiu quase por completo (a crise financeira nascida com o subprimeencarregou-se de fazer ruir o resto). Tudo isto decorreu no primeiro trimestre de 2003. No ano seguinte, nasciam a Google e o Facebook. Todos passámos a ser especialistas à distância de um clique, fechados na nossa própria bolha de ignorância, e hoje a democracia como a conhecemos está em risco.

O modelo de partilha assumido com base nas conveniências e nos interesses prévios não passou despercebido a dois tipos de grupos com motivações muito diferentes. O primeiro viu uma oportunidade para enriquecer, precisamente com base na lógica do clique que o modelo de publicidade digital elevou à condição de sucesso. Começaram assim a surgir na Europa de Leste (Macedónia, Bulgária, Geórgia) e em alguns países árabes (Turquia, Índia) verdadeiros aglomerados fabris cujo objectivo era produzir conteúdos à medida das convicções dos utilizadores, disseminados via redes sociais com fluxos de tráfego imenso para páginas que se pareciam com meios de comunicação legítimos mas mais não eram do que armadilhas à credulidade dos incautos. Geraram-se verdadeiras fortunas com textos sobre as loucuras de Hillary Clinton, as conspirações judaicas para dominar o mundo e a subserviência de Barack Obama ao islamismo. Tudo notícias falsas, algumas melhor produzidas que outras, prontas a enganar o público mais susceptível: os fãs de Donald Trump que desprezam especialistas e que não acreditam nos média de referência.

O outro grupo atacou precisamente o mesmo público-alvo, mas de forma mais insidiosa e com objectivos ainda menos legítimos. Está a decorrer no Senado e na Câmara dos representantes norte-americana uma ronda de inquéritos que visa esclarecer a real dimensão da interferência russa nas eleições americanas, mas as provas já recolhidas são suficientes para confirmar a sua existência e impacto directo no resultado. São aos milhares os perfis falsos criados no Facebook e no Twitter com o único intuito de propagar uma mensagem de ódio anti-Clinton e pro-Trump, reforçando divisões antigas da sociedade norte-americana e espicaçando velhos medos que foram sempre de encontro ao que Trump propôs na sua campanha – exactamente a mesma fórmula ensaiada para  agregar os fãs de Trump à volta de sites como o infame Breitbart. O resultado está à vista.

A receita já tinha sido ensaiada, com sucesso, no referendo britânico para a saída da União Europeia em 2015. Aí tudo tinha sido mais fácil, porque a desonestidade começou mesmo na classe política instalada. Michael Gove, na altura ministro da Justiça e empenhadamente pró-Brexit, clamou com orgulho que “o país estava farto de especialistas” e que era hora “de dizer basta”.

Pelo meio repetiu, em coro com outras personagens da campanha, uma série de mentiras repetidas várias vezes ao dia – mentiras essas que foram depois partilhadas nas redes sociais por aqueles que queriam acreditar no que lhes foi dito sem aceitar uma verificação independente.

Ficou famoso o autocarro que percorreu a Grã-Bretanha com uma frase pintada em que se afirmava que o Reino enviava todas as semanas 350 milhões de libras para Bruxelas – o pequeno pormenor de esse valor ser completamente inventado não impediu todos os políticos pro-Brexit de defender a afirmação, tendo alguns sido premiados com cargos ministeriais no governo conservador que se ergueu das ruínas da demissão da equipa de David Cameron.

Nas redes sociais, as quintas de trolls fizeram o seu papel e propagaram as mentiras, ampliando as bolhas filtradas em que muitos vivem e que condiciona emocionalmente as suas capacidades analíticas. Em suma, a democracia britânica foi tomada de assalto e as lições aprendidas foram aplicadas vigor reforçado nos Estados Unidos – com resultados semelhantes. E este é o risco maior da bolha que nos força a evitar quem pensa diferente e quem tem outras ideias.

Controlar o mundo

Desde as teses de Lutero que a humanidade tem tomado opções a partir do debate de ideias, que é o mesmo ponto de partida para a democracia moderna onde se sustentam todas as sociedades liberais do planeta. Mas é também nelas que se generalizaram as extraordinárias plataformas de manipulação de massas chamadas Facebook, Twitter e Google, que se aproveitam do descrédito das classes política e científica para interferir nas escolhas soberanas das populações, subvertendo a lógica democrática e perturbando gravemente as instituições internacionais.

Mesmo que as questões da manipulação ideológica e das bolhas de pensamento se resolvessem, o problema de fundo irá manter-se. Estas empresas vivem da maximização do lucro a todo o custo e esse só se consegue com a absoluta dependência do consumidor, o que implica atropelos à liberdade individual e colectiva, à privacidade e à democracia. No limite, estas empresas são inimigas do espírito original que presidiu ao surgimento da rede global.

O objectivo final destas plataformas é criar pequenas internets fechadas, ecossistemas independentes que não comunicam entre si e onde o utilizador vive numa imensa bolha de relações pré-determinadas – onde todas as nossas escolhas são geridas de forma automática em nome de uma suposta eficiência social, graças a algoritmos avançados que são detidos e determinados por estas plataformas.

Dito de outra forma: estas empresas querem acabar com a internet. Como olham para a vida digital dos cidadãos do planeta a partir do prisma do lucro, sabem que só o podem maximizar se conseguirem captar toda a informação disponível e a fecharem num ciclo repetitivo de estímulos que provocam respostas dos utilizadores.

Franklin Foer, jornalista que tem documentado a interacção das grandes empresas com a cultura popular e que escreveu um livro sobre o tema, tem uma visão muito pessimista: “Estamos à beira deste precipício que é a era das artes e ideias criadas por algoritmos. As máquinas sugerem os tópicos mais populares a serem debatidos pelos humanos, e estes cada vez mais obedecem. Em vez de experimentarmos e procurarmos a novidade, deixamos que os dados nos mostrem o caminho, moldando-nos de acordo com uma fórmula”.

O norte-americano argumenta que estamos na era da “manipulação desmedida” e que não podemos baixar os braços. “A eleição de Donald Trump trouxe também o choque do reconhecimento colectivo de que a nossa cultura mediática está degradada, e uma sensação de que precisamos de defensores da verdade mais empenhados do que os guardiões do Facebook e da Google. Compreender o problema não basta. Temos de deixar que a nossa análise ao problema nos guie até soluções radicais antes que transformemos de forma irreversível os nossos mais importantes valores e instituições”, apela.

Enquanto nada disto acontece, as grandes tecnológicas prosseguem na missão de dominar o mundo. Para aí chegar, têm tido estratégias diferentes: A Amazon quer ser o fornecedor global de todos os produtos e por isso posiciona-se de forma cada vez mais determinada no mercado da distribuição, reduzindo margens aos produtores e subsidiando os consumidores até que estes aderem definitivamente aos novos produtos – o melhor exemplo é o dos ebooks, mercado globalmente dominado pelo Kindle da Amazon.

Já o Facebook quer colocar dentro da sua plataforma toda a internet que interessa ao utilizador comum, começando pelas plataformas de comunicação e estendendo-se ao entretenimento (daí a aposta decidida na realidade virtual, que se pretende que seja a única nova plataforma do futuro), criando as bases para vender publicidade de forma ainda mais eficiente.

A Google, depois de perder a guerra das redes sociais, antevê um mundo em que tudo é digital e tudo passa pelo seu controlo – daí a miríade de investimentos em tecnologia, saúde, carros sem condutor, cidades inteligentes, energias renováveis, pagamentos digitais, exploração espacial, etc., pelo que necessita de aceder a toda a informação disponível, para a angariar e optimizar os produtos que desenvolve.

Todas estas sociedades planeadas são versões apocalípticas que nem Aldous Huxley ousou sonhar, pelo menos não com este grau de detalhe. É a distopia que muitos dos que ajudaram a fazer esta revolução digital hoje assumem temer.

A mesma que o investigador bielorrusso Evgeni Morozov, o crítico de referência do solucionismo digital, tem apregoado: “O sistema mais eficiente de controlo da internet não é aquele que abusa da sofisticação e aplica um sistema de censura draconiano, mas aquele que não aplica qualquer tipo de censura”. Não há dúvidas de que a grande maioria de nós não deseja este cenário. Mas estamos a contribuir decisivamente para ele todos os dias”.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal