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Imagem de uma nuvem digital com a bandeira russa como pano de fundo. Crédito: Shutterstock

A guerra da Rússia também é cognitiva

Este é o primeiro de uma série de artigos da «Foreign Policy», ao abrigo de uma parceria editorial da Fundação com esta revista internacional, com o objetivo de facilitar o acesso do público português às reflexões de alguns dos melhores analistas mundiais. Um texto escolhido por Bruno Cardoso Reis, professor no ISCTE-IUL, que «nos ajuda a perceber melhor a estratégia de guerra cognitiva russa, os seus objetivos e resultados no Ocidente e no resto do mundo».
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A Rússia tem recorrido à guerra cognitiva — uma forma de guerra em que se procura influenciar o pensamento, as decisões e as ações do adversário — para atingir objetivos estratégicos que não são alcançáveis exclusivamente através das suas capacidades materiais. Não é o único país a fazê-lo.

A China, o Irão e a Coreia do Norte também recorrem cada vez mais à guerra cognitiva para enfrentar os Estados Unidos. Mas a Rússia tem-se revelado especialmente hábil ao usar esta abordagem para a ajudar na guerra contra a Ucrânia, conseguindo influenciar as decisões ocidentais, preservar o regime do presidente Vladimir Putin e disfarçar as fragilidades do país. É certo que a guerra cognitiva não é a única estratégica de combate do Kremlin. No entanto, é fundamental compreender o seu empenho em fazer com que o mundo veja as coisas como Moscovo quer que sejam vistas, para depois sermos levados a tomar decisões com base numa realidade fabricada pelo Kremlin.

O alvo principal da guerra cognitiva russa é a vontade de agir do adversário. Para conseguir mais, a Rússia precisa que os outros façam menos. É muito provável que a Rússia seja derrotada caso o Ocidente opte por apoiar mais a Ucrânia. As economias dos países da NATO, dos membros da União Europeia não pertencentes à NATO e dos aliados asiáticos dos Estados Unidos fazem, na sua totalidade, com que a economia russa pareça insignificante. O objetivo russo tem sido, portanto, fazer com que os Estados Unidos cheguem à conclusão de que a vitória da Rússia na Ucrânia é inevitável — ou mesmo que é do interesse dos EUA — e que Washington deve manter-se à margem.

A guerra cognitiva não é mera desinformação ao nível da tática. A Rússia utiliza todas as plataformas transmissoras de narrativas — meios de comunicação social, conferências, estruturas internacionais, canais diplomáticos, indivíduos — como instrumentos para a sua guerra cognitiva. Este esforço é também apoiado por ações físicas, incluindo exercícios militares, sabotagens, ciberataques e operações de combate.

Se persuadir os outros de que é demasiado difícil compreender a realidade factual, demasiado difícil resistir à Rússia e demasiado difícil ter a certeza de qual dos lados está certo e de qual está errado, o Kremlin terá atingido os seus objetivos.

A Rússia também não dispõe do poder militar necessário para se impor pela força. Ao ritmo dos avanços atuais, seriam necessários mais de 100 anos para conquistar os restantes 80% da Ucrânia

A guerra cognitiva nasce da necessidade e da oportunidade. A Rússia não é fraca, mas é fraca para o nível de ambição dos objetivos pretendidos. Os objetivos de Putin têm-se mantido quase inalterados ao longo dos anos, a saber: preservar o seu regime; restabelecer a Rússia como uma grande potência, o que pressupõe recuperar o controlo sobre os Estados que anteriormente faziam parte da União Soviética e estabelecer uma ordem mundial em que os Estados Unidos fiquem debilitados, a unidade da NATO seja quebrada e a Rússia exerça uma influência decisiva.

Porém, Putin não dispõe dos meios para atingir os seus objetivos. Com frequência, a Rússia não é suficientemente forte para impor a sua vontade aos outros, nem é suficientemente apelativa para ser um parceiro de eleição. A esfera de influência do país é, em grande parte, uma invenção. Os países vizinhos não estão dispostos a escolher a Rússia como parceiro exclusivo — ou sequer como simples parceiro. A Rússia também não dispõe do poder militar necessário para se impor pela força. Ao ritmo dos avanços atuais, e partindo do princípio de que a Rússia poderia suportar baixas massivas indefinidamente, seriam necessários mais de 100 anos para conquistar os restantes 80% da Ucrânia. Outros antigos Estados soviéticos, como a Moldávia, têm resistido às tentativas de domínio do Kremlin.

O Kremlin recorre à guerra cognitiva para reduzir o hiato entre os seus objetivos e os meios de que dispõe. O seu principal empenho no domínio cognitivo é fazer com que o mundo aceite, sem nunca se opor, as premissas russas e as suas ações. A Rússia terá mais hipóteses de subjugar a Ucrânia se o Kremlin conseguir que o mundo aceite a falsa premissa de que a vitória russa é inevitável e de que a continuação da ajuda ocidental à Ucrânia é inútil. A Rússia terá mais hipóteses de impor a sua vontade se o Kremlin conseguir que o mundo aceite a falsa premissa de que a Rússia simplesmente tem direito à sua esfera de influência.

O Kremlin tem igualmente tentado apresentar a atuação da Rússia como justificada, com vista a mitigar a resistência às ações russas, desenvolvendo grandes esforços para refutar e ocultar as suas atrocidades.

A guerra cognitiva russa consiste também em procurar esconder as suas fragilidades e, ao mesmo tempo, desacreditar os seus alvos. Embora seja retratado pelo Kremlin como um líder de guerra eficaz, a verdade é que Putin não conseguiu, ao fim de três anos de guerra, alcançar quase nenhum dos objetivos militares por si declarados — e isto apesar de se estimar que um milhão de russos tenham sido mortos ou feridos no conflito. O Kremlin desvaloriza os sucessos da Ucrânia — como a libertação de alguns territórios ocupados — e os fracassos da Rússia — como a sua incapacidade de proteger as suas fronteiras contra a incursão ucraniana no oblast de Kursk.

A guerra cognitiva da Rússia é anterior à governação de Putin. Na verdade, tem várias décadas de existência. Trata-se de uma estratégia com origem na doutrina soviética do «controlo reflexivo». O termo foi cunhado pelo matemático e psicólogo soviético Vladimir Lefebvre em 1967, que o definiu como um processo de transferência dos pressupostos para a tomada de decisões de um oponente para o outro — por outras palavras, manipular os processos de raciocínio das pessoas, levando-as a chegar a conclusões que, neste caso, convêm à Rússia e a agir com base nessas conclusões, assim inadvertidamente promovendo os objetivos da Rússia.

A guerra cognitiva da Rússia envolve reciclar as estratégias e os instrumentos soviéticos usados para veicular determinadas mensagens. A ostentação do seu poder militar — as suas armas nucleares, a sua frota e os seus sistemas de mísseis — foi uma tática muito usada pelos soviéticos na sua comunicação estratégica visando o Ocidente. Em 2013 e 2014, o Kremlin investiu no aumento das capacidades e do alcance da agência noticiosa estatal TASS (originalmente fundada como Agência Telegráfica da União Soviética). A TASS foi uma importante fonte de propaganda interna e externa e, no período de dominação soviética, esteve presente em 116 países.

O Kremlin intensificou os seus esforços de guerra cognitiva externa na sequência de uma série de protestos pacíficos contra regimes corruptos, ocorridos em Estados que anteriormente faziam parte da União Soviética, nomeadamente a Revolução das Rosas de 2003 na Geórgia e a Revolução Laranja de 2004 na Ucrânia. O empenho dos vizinhos da Rússia em instituírem uma governação mais transparente, ao estilo ocidental, pôs em causa o objetivo da Rússia de controlar esses Estados, e Putin viu este desenvolvimento como uma ameaça ao seu regime. Ao longo dos anos, Putin sublinhou que o Kremlin «deveria fazer tudo o que fosse necessário para que nada de semelhante acontecesse na Rússia», e o Kremlin lançou uma série de operações de informação para travar e inverter a perda de influência russa na Ucrânia e noutros antigos Estados soviéticos.

A guerra cognitiva da Rússia é anterior à governação de Putin. Na verdade, tem várias décadas de existência. Trata-se de uma estratégia com origem na doutrina soviética do «controlo reflexivo».

Foi em 2004 que a Rússia começou a semear narrativas sobre o separatismo na Ucrânia. Uma década depois, em 2014, essas narrativas foram usadas como justificação para a operação híbrida da Rússia, destinada a apoderar-se de algumas regiões orientais e meridionais da Ucrânia e, mais tarde, para a invasão em grande escala de 2022.

O Kremlin tem dado prioridade a expandir o seu conglomerado mediático global. No «Conceito Estratégico de Política Externa» de 2016, elencou, entre as prioridades nacionais, o objetivo de «reforçar a posição dos media russos no espaço de informação mundial». Nessa mesma década, as organizações de comunicação social controladas pelo Kremlin — RT, TASS e Sputnik — lançaram uma ação concertada para formar parcerias com meios de comunicação social estrangeiros. O Kremlin tem igualmente investido em promover, através de programas de formação, uma série de jornalistas estrangeiros favoráveis à Rússia.

Alguns autores militares russos defendem mesmo que todas as ações russas, incluindo as operações militares cinéticas, devem ter por objetivo gerar efeitos informativos. Na Doutrina de Segurança da Informação da Federação Russa, de 2016, apelou-se à criação de uma política de informação russa independente, à gestão segmentada da internet russa e à eliminação da dependência russa face a tecnologias de informação estrangeiras. Em 2018, o país fundou a Direção Político-Militar, destinada a incutir a ideologia do Kremlin nas forças armadas russas. De igual modo, a União Soviética tinha integrado comissários políticos nas suas forças armadas, com vista a assegurar o alinhamento dos militares com a ideologia e os objetivos do Partido Comunista.

Putin tem usado esta capacidade não só para levar a cabo as suas guerras, mas também para governar. Nos primeiros dias da sua presidência, os serviços de segurança russos invadiram uma das maiores estações de televisão independentes. Em 2003, Putin já tinha conseguido estabelecer o controlo estatal sobre os meios de comunicação social russos. Desde 2000, a cada ano, o Kremlin introduziu novas formas de controlo da informação e, desde que lançou a invasão em grande escala da Ucrânia, Putin intensificou o regime de censura. Em abril, o Estado condenou uma adolescente russa a quase três anos de prisão por ter citado poesia ucraniana do século xix em protesto contra a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Os esforços para criar uma plataforma nacional de mensagens instantâneas contam-se entre as mais recentes iniciativas do Kremlin visando aprofundar o controlo das comunicações internas.

Tudo isto é bastante eficaz — mas só até certo ponto. A guerra cognitiva permitiu que a Rússia obtivesse alguns resultados que teriam sido impossíveis apenas com meios convencionais. O pano de fundo informativo, em que impera o modelo de uma escalada da guerra alimentada pelo Kremlin, condicionou as decisões ocidentais sobre o fornecimento de ajuda militar à Ucrânia, resultando em oportunidades perdidas para a Ucrânia e em vantagens no campo de batalha para a Rússia.

Contudo, o Kremlin está demasiado dependente da guerra cognitiva. É também vulnerável aos factos reais, que minam a narrativa de uma Rússia poderosa e de um Putin poderoso — uma das principais fragilidades da Rússia ainda por explorar.

A excessiva confiança da Rússia nesta sua capacidade diminuiu o poder real do país e trouxe destruição à sociedade — um prejuízo do qual o país levará gerações a recuperar, se é que a recuperação é possível

A chave para nos defendermos da guerra cognitiva russa é fazê-lo ao nível do raciocínio estratégico, simultaneamente resistindo ao impulso de andar a reboque dos esforços de desinformação tática da Rússia. Os Estados Unidos devem compreender quais são as premissas em que o Kremlin nos quer fazer acreditar, quais são as decisões de Washington que os russos pretendem moldar e quais são os objetivos que pretendem alcançar. Depois disso, devem repudiar as premissas que o Kremlin tanto se esforça por naturalizar. Por exemplo, os Estados Unidos podem desconstruir a ideia de que a Rússia tem direito à sua alegada esfera de influência, bem como o pressuposto de que a vitória militar da Rússia na Ucrânia é inevitável.

Agir é muitas vezes a forma mais eficaz de neutralizar a guerra cognitiva. Graças aos ataques com drones e mísseis contra a frota russa no Mar Negro, que a Ucrânia empreendeu com sucesso, a Rússia foi derrotada nos seus esforços por criar a falsa perceção de que a Ucrânia prejudicava a segurança alimentar mundial. A ação militar ucraniana impediu que a Rússia mantivesse um bloqueio de facto e, por consequência, permitiu reativar o comércio de cereais através do Mar Negro.

Embora determinadas narrativas russas possam sofrer alterações, as premissas mais genéricas que o Kremlin tem procurado enraizar através destas narrativas não mudam, tal como não mudam os objetivos gerais para os quais esta guerra cognitiva pretende contribuir. Assim, é possível desenvolver uma consciência sistemática da situação, com vista a monitorizar, prever e neutralizar a guerra cognitiva russa.

A excessiva confiança da Rússia nesta sua capacidade diminuiu o poder real do país e trouxe destruição à sociedade — um prejuízo do qual a Rússia levará gerações a recuperar, se é que a recuperação é possível. O melhor que o Ocidente tem a fazer é neutralizar os esforços de guerra cognitiva russos (e iranianos, norte-coreanos e chineses), expondo-os, empenhando-se em refutar as falsas premissas e concentrando-se no mundo real, em vez de se mover na realidade artificial que a guerra cognitiva se esforça por criar.

 

* Este artigo resulta da adaptação de «A Primer on Russian Cognitive Warfare» (Uma Introdução à Guerra Cognitiva Russa), um relatório elaborado por Nataliya Bugayova e Kateryna Stepanenko e publicado a 30 de junho pelo Institute for the Study of War (Washington).

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