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Estamos «profundamente desiludidos com os actores políticos» e isso abre portas ao populismo

Estamos «profundamente desiludidos com os actores políticos» e isso abre portas ao populismo

Excerto do livro 'Qualidade da democracia em Portugal', de Conceição Pequito Teixeira.
5 min
«O facto de metade da população ter uma atitude favorável relativamente à possibilidade de um governo de um líder forte, que não preste contas da sua actuação ao parlamento, nem seja responsabilizado através do controlo popular eleitoral, não pode deixar de suscitar legítima apreensão.»

Se é verdade que o apoio dos portugueses ao regime democrático é largamente maioritário, não é menos verdade que esse apoio coexiste com o apoio dos portugueses a outras formas de regime de tipo autoritário, nomeadamente (a) o apoio a um regime de um líder forte sem controlo eleitoral nem parlamentar, bem como (b) o apoio a um regime em que a responsabilidade das decisões mais importantes para o país cabe a um corpo de especialistas e não a políticos democraticamente eleitos para tal.

Se atendermos ao facto de entre 2008 e 2014 a adesão dos portugueses a formas autocráticas de governo – nomeadamente a um «governo de um líder forte» ou a um «governo de especialistas » – se situar nos 50% e nos 67% respectivamente, a questão do apoio à democracia enquanto «único regime legítimo» não pode deixar de suscitar justificada apreensão. Mesmo quando se verifica que o apoio dado a essas opções antidemocráticas conheceu um decréscimo significativo no período considerado, sobretudo quando em causa está a opção por um regime de um «líder forte» (-18,5%). 

Quanto a nós, o facto de 50% dos portugueses manifestarem a sua preferência por um «governo de um líder forte», que não tenha de se preocupar nem com o controlo popular exercido através de eleições livres, periódicas e competitivas, nem com a fiscalização da sua actuação pelos partidos com representação parlamentar, mais do que sinalizar uma crise de legitimidade do regime, parece ser o resultado da sobrevivência no Portugal democrático de alguns traços de uma cultura política manifestamente antipartidária e antiparlamentar, fruto de quase meio século de um regime de recorte ditatorial, centrado na figura de Oliveira Salazar e profundamente marcado pelo seu estilo pessoal de governação.

Para além destes traços antidemocráticos que subsistem na cultura política portuguesa, estes dados mostram‑nos também – e talvez de forma mais consentânea com uma democracia que conta já com mais de quarenta anos de existência – a importância que tem entre nós o fenómeno da forte personalização da vida política, em que o carisma e as virtudes dos líderes tendem a ser mais importantes do que as ideias professadas pelos partidos, um traço da cultura política portuguesa que remonta ao sebastianismo e ao culto dos homens providenciais.

Um fenómeno que resulta também da evolução de um sistema semipresidencialista (tal como previsto na Constituição) para um sistema de governo que tem sido designado com toda a propriedade de «presidencialismo de Primeiro‑Ministro», uma vez que, na realidade, o que se observa é a excessiva concentração do poder no governo e, dentro deste, na pessoa do primeiro‑ministro. O que faz com que as eleições legislativas sejam vistas mais como a eleição directa do governo e do futuro chefe do executivo e menos como a escolha dos candidatos a deputados ao parlamento.

Já a circunstância de mais de dois terços dos portugueses manifestarem a sua preferência por um «governo de especialistas» em vez de um «governo de políticos» traduz menos a opção por um governo antidemocrático – que pressupõe que sejam apenas chamados a decidir aqueles (poucos) que detêm conhecimentos específicos –, mas antes a crescente desconfiança dos cidadãos em relação à classe política: a qual, segundo os dados do inquérito nacional de 2014, é considerada pela maioria dos portugueses como sendo «corrupta, indiferente aos reais problemas da população e pouco preparada do ponto de vista técnico e político».

Se estes dados não desafiam a legitimidade da democracia enquanto regime político em Portugal, não podemos, contudo, esquecer que a democracia e a tecnocracia são antitéticas: a democracia assenta no pressuposto de que todos podem decidir a respeito de tudo, enquanto a tecnocracia pressupõe que sejam apenas chamados a decidir aqueles (poucos) que detêm conhecimentos específicos – e, como tal, é uma forma de governo não democrática.

Por outro lado, o facto de uma percentagem tão elevada de portugueses preferir que sejam os especialistas e não os políticos a tomar as decisões que consideram ser as melhores para o país obriga‑nos a reflectir sobre algumas questões importantes, desde logo sobre o tema da profissionalização da política entendida como especialização técnica e não estritamente como carreira política.

Uma carreira que, no sistema político português, pressupõe um longo cursus honorum no interior dos partidos, nos quais a escolha daqueles que ocupam cargos públicos electivos («políticos profissionais») ou de nomeação política («políticos semiprofissionais» ou «políticos camuflados») resulta de critérios estritamente partidários, definidos de forma hierárquica e centralizada por uma oligarquia interna que detém o poder de decisão; e que nada têm a ver com as qualidades pessoais ou os percursos profissionais dos candidatos a tais cargos – e daí a conhecida rigidez e fechamento da classe política face à sociedade civil, a sua natureza autorreferencial e a falta de qualidade e renovação dos seus membros. Estes dependem cada vez mais, e na maioria dos casos exclusivamente, da vida política para
viver, fazendo desta uma profissão a tempo inteiro e a título permanente, e não uma verdadeira missão à causa pública, temporária e desinteressada.

Também o facto de metade da população ter uma atitude favorável relativamente à possibilidade de um governo de um líder forte, que não preste contas da sua actuação ao parlamento, nem seja responsabilizado através do controlo popular eleitoral, não pode deixar de suscitar legítima apreensão e aturada reflexão. Precisamente porque é por aqui que, regra geral, avançam os líderes e os discursos populistas, sobretudo em contextos de crise económica e social e de falta de qualidade das lideranças políticas, propondo soluções fáceis para problemas complexos e indo ao encontro de eleitores famintos de respostas quase mágicas e de curto prazo, mas também profundamente descrentes e desiludidos com os actores políticos tradicionais.

O que é tão ou mais preocupante quando na Europa, mas também fora dela, se assiste cada vez mais à clara fragilização da democracia e ao fortalecimento da autocracia, à ascensão de líderes e movimentos populistas perante a inércia e a passividade das forças políticas estabelecidas, à crescente repressão da liberdade de expressão e de associação e à disseminação do discurso do medo e da insegurança face ao «outro».

Excerto das páginas 60 a 63 do livro Qualidade da democracia em Portugal, de Conceição Pequito Teixeira.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal