A
A
As lições do Afeganistão para a União Europeia: (mais uma) 25ª hora?

As lições do Afeganistão para a União Europeia: (mais uma) 25ª hora?

O Afeganistão pode saldar-se como um (expectável) travão à solidariedade e ambição dos 27, defende neste artigo a especialista em Relações Internacionais Ana Isabel Xavier.
5 min
Desde a tomada de Cabul pelos talibãs, a 15 de agosto, que as análises políticas se têm invariavelmente concentrado na avaliação do impacto da retirada das tropas americanas e nas múltiplas e legítimas dúvidas e inquietudes sobre o futuro do Afeganistão enquanto nação e sistema de governação.

Embora a conjuntura seja ainda recente e imprevisível e, por isso, pouco ajuizada para lições ou ilações, os últimos dias têm também exigido uma atenção redobrada para o continente europeu e para a inevitabilidade da metastização migratória e do retorno do eterno debate sobre o reforço do ator de segurança e defesa. Mas estará a União Europeia à altura de mais uma 25ª hora?

As reuniões de rentrée dos ministros europeus dos negócios estrangeiros, defesa e interior da última semana de agosto tendem a revelar que o Afeganistão, mais do que um (desejável) acelerador pode saldar-se como um (expectável) travão à solidariedade e ambição dos 27.

Entre os ministros do interior, o Afeganistão parece não ser (ainda) um problema da União Europeia, tendo-se notado uma ausência de compromisso no acolhimento de requerentes de asilo e preferindo-se, à semelhança do que se passou com a Síria desde 2015, financiar países vizinhos que funcionem como buffer zones ou reforçar a assistência financeira adicional a países terceiros.

O Afeganistão parece não ser (ainda) um problema da União Europeia, tendo-se notado uma ausência de compromisso no acolhimento de requerentes de asilo.

A expetativa de se implementar o novo pacto em matéria de migração e asilo, proposto pela Comissão Europeia há um ano, ficou também pelo caminho. Também aqui os Estados-membros parecem estar (ainda) confortáveis com a manta de retalhos de soluções regulatórias existente e em continuar a acompanhar as implicações do fluxo migratório para a segurança europeia.

O braço de ferro com a Comissão Europeia por parte de alguns Estados-membros em Julho para manter-se a possibilidade de deportar migrantes afegãos, revelou como a questão é sensível em algumas capitais europeias que, pelo menos desde 2009, já testemunhavam a movimentação de migrantes e requerentes de asilo afegãos.

Por sua vez, na esfera dos negócios estrangeiros e da defesa também foi notória a ausência de convergência em torno de uma ambição geopolítica na frente externa europeia.

Os 27 parecem ter protelado a inevitabilidade que os grandes desafios para um continente estável, pacífico, democrático e próspero estão nas fronteiras externas da União e o alargamento aos Balcãs ocidentais como uma necessária e urgente oportunidade.

A ausência de consenso em torno da autonomia estratégica da União Europeia permitiu apenas confirmar que o processo de conceção e desenvolvimento de uma bússola estratégica (previsto para a primavera de 2022 sob a presidência francesa do conselho da União Europeia) só fará sentido se forem equacionadas modalidades alternativas para uma efetiva capacidade de comando e controlo nas já plasmadas missões de estabilização, consolidação da paz e desenvolvimento.

Na realidade, o Tratado de Lisboa já oferece margem de manobra, no art. 44, para que um grupo de Estados-membros avance, por exemplo, com uma força de intervenção rápida multinacional que apoie a retirada e evacuação de civis europeus ou afegãos.

O Comissário europeu para o mercado interno, o Francês Thierry Breton, dizia ao «Finantial Times» que a defesa comum europeia já não pode mais ser uma opção. O que estas últimas semanas de análise sobre o Afeganistão revelam é que a União Europeia parece não ter (ainda) vontade política e capacidades reais para transporte aéreo, vigilância, intelligence, logística ou forças de proteção eficazes.

A União Europeia não é um Estado, não é uma federação de Estados e não tem um exército europeu à sua disposição (como se tal fosse panaceia para o ADN normativo de gestão de crises). Entre 2007 e 2016, a União Europeia destacou botas no terreno com uma missão de apoio aos esforços de reforma do governo afegão na formação de uma polícia civil (a EUPOL).

Desde junho de 2019, estava em curso um mecanismo de apoio à paz, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros Sueco como principal doador em coordenação com entidades locais para a promoção dos direitos humanos e boa governação. Desde 2018, a UE tem promovido a cooperação regional, a estabilidade, a paz, o comércio e uma conectividade sustentável, em conformidade com o programa "Interligar a Europa e a Ásia” e, até 2025, com as Nações Unidas, tem em marcha um programa de educação superior e formação técnica de mulheres afegãs.

Mas para que a assistência ao desenvolvimento seja relançada sem condicionalismos, é necessário que o futuro governo afegão reflita uma transição pacífica e inclusiva que respeite os direitos fundamentais de todos os afegãos, incluindo mulheres, jovens e minorias.

Para que a assistência ao desenvolvimento seja relançada sem condicionalismos, é necessário que o futuro governo afegão reflita uma transição pacífica e inclusiva que respeite os direitos fundamentais de todos os afegãos, incluindo mulheres, jovens e minorias.

A edificação de uma conceção de poder e de governação reconhecida internacionalmente como válida é fundamental para que a União Europeia salvaguarde que os fluxos migratórios irregulares não se intensifiquem de forma descontrolada e que o terrorismo transnacional não encontre nas fronteiras europeias alvos reais. Para já, e também por isso, os Talibãs são percecionados como os únicos interlocutores possíveis para um diálogo institucional com reservas e cautelas.

Mas estará a União Europeia à altura de mais uma 25ª hora? À semelhança da opção de retraimento estratégico do Médio Oriente e investimento na região ásia-pacífico por parte dos EUA, também a União Europeia parece ter encontrado já a sua verdadeira prova de fogo e interesse vital fora do Afeganistão – a região do Sahel, onde a União Europeia tem destacada a EUCAP Sahel Mali desde 2014 e a EUCAP Sahel Niger desde 2012.

É deveras importante a consciência que uma eventual retirada francesa do Mali poderia replicar dinâmicas similares ao Afeganistão no que diz respeito a grupos criminosos e terroristas.

Seria essa a 25ª hora capaz de despoletar uma frente unida e consensual para uma efetiva união de segurança e defesa? Ou ainda se esperam lições e ilações do Afeganistão capazes e acelerar os próximos passos (mesmo que teóricos) do ator sui generis que será sempre a União Europeia?

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pela autora.

Portuguese, Portugal