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Alguns pressupostos para análise de uma narrativa presente

Alguns pressupostos para análise de uma narrativa presente

Artigo de opinião de Pedro Calafate, autor do livro «Portugal, Um Perfil Histórico», publicado na colecção de Ensaios da Fundação.
5 min

A história é sempre uma interpretação fundada em pressupostos teóricos e doutrinais, razão por que não se pode falar, a seu respeito, de uma leitura teoricamente neutra da experiência, pois os factos terão sempre de ser integrados em conjuntos mais amplos e em relações densificadas que estruturam esquemas de leitura. Não sendo uma ciência, é, não obstante, um estudo cientificamente conduzido, atento à interindividualidade crescente das conclusões e à tecnicidade possível dos meios de verificação. Nesse sentido, possui um dinamismo intrínseco que possibilita uma reinvenção permanente do passado, mas à luz do rigor metodológico e da disciplina crítica.

Outra coisa bem distinta é erguermos, à partida, uma história-tribunal, pragmática e valorativa, que transforma o passado num prolongamento do presente, com vista à apreensão de patologias sociais coletivas, cuja cura se deseja urgente. A história-tribunal não é exatamente a história-conhecimento, podendo embora depender dela para a escolha dos seus temas prediletos. Entre outras coisas, aquela caracteriza-se pela dependência perante uma tendência estática, marcada pelo anacronismo, quer dizer, impondo o império unitário de um modelo de racionalidade, idêntico não só para todo o sujeito pensante, mas para todas as épocas, sendo que tal modelo visa essencialmente uma intervenção sobre o presente da vida do homem em sociedade, em contexto permeável à ideologia.

Como tantas vezes sucedeu no passado, este esquema alimenta-se de ruturas com épocas e acontecimentos que, à luz de vincado dramatismo, arrastam cargas afetivas de sabor intensamente negativo. Neste caso, ergue-se amiúde uma polaridade antitética de coloração dramática, num contexto em que o passado obriga. Talvez o exemplo mais marcante desta tendência entre nós seja a Dedução Cronológica e Analítica (1767), de pombalina memória, em que o passado, sobretudo o século XVII, foi lido à luz da ofensiva global do geometrismo, que se afirmou como a lógica do Estado Absoluto.

Não podemos esquecer-nos, como sublinhou Hannah Arendt, de que no século XIX o racismo era intensamente cultivado por numerosos intelectuais de relevo. E que no século XVIII, grandes nomes da filosofia das Luzes, que cultivaram com afinco a ideia de Humanidade e de paz universal, veicularam ideias que hoje qualificaríamos como racistas. Leia-se por exemplo Philosophers on Race: critical essays (Oxford, 2002).

Portanto, é sempre importante saber em que plano inscrevemos as nossas considerações sobre o passado de um povo, neste caso o nosso. Se no plano da história-tribunal em que o passado obriga, na medida em que é simplesmente o prolongamento de uma agenda reformadora presente, ou se no plano da história-conhecimento, com as exigências que acima notámos. Ambos são legítimos, mas a fronteira tem que ser clara.

Não tivemos sempre a mesma imagem de nós próprios como nação e comunidade.

O mesmo se passa com o fenómeno da construção das identidades coletivas, atinentes ao modo como nos interpretamos como povo e comunidade. Dizer-se que somos um povo com estas ou aquelas características não pode ser encarado fora de uma perspetiva diacrónica de autoconstrução de si, vincando o dinamismo das etapas da construção da consciência histórica dos povos e das comunidades, num percurso em que se vão articulando diferenças e se vão percebendo continuidades dinâmicas. E também cumpre não esquecer que nenhuma época se reduz a uma uniformidade, e que, se assim a leem, alguém se engana.

No nosso caso, não nos pensámos sempre da mesma forma ao longo do tempo. Não tivemos sempre a mesma imagem de nós próprios como nação e comunidade. As múltiplas imagens do nosso passado como povo que a história-conhecimento documenta constituem um plano de análise de inusitada riqueza (Cf. Calafate, Portugal, um perfil histórico, FFMS, 2016). E aí se inclui também o modo como essas imagens foram usadas no quadro da história pragmática e valorativa. No nosso caso, a alternância entre ufanismo e decadentismo, quase sempre em contextos de forte dramaticidade, é uma das marcas desse percurso em que se foram formulando as nossas razões históricas de ser.

A presente narrativa sobre o nosso passado ultramarino, vincando interpretações extremadas de desvalia coletiva, é mais uma dessas etapas que pode ser fecunda se convenientemente enquadrada nos contextos que procurei apontar. Creio que vale não tanto pelo conhecimento do passado a que pretende referir-se, mas sobretudo por se tratar de uma imagem sobre o passado traduzida em agenda presente. Um daqueles casos em que, como já dissemos, o passado se transforma num prolongamento do presente. O mesmo sucedeu de algum modo em Espanha, fortemente marcada pela “leyenda negra” sobre os tempos de Cortés e Pizarro, construída em parte considerável graças ao relato de Las Casas sobre a destruição das Índias. Os actos de destruição e violência de Espanha nas Américas estão suficientemente documentados, mas isso não exclui que quem mais na época moderna tenha editado o relato de Las Casas na Europa tenham sido os holandeses, no contexto da luta pelas hegemonias no mundo moderno. Importa, pois, atender a estes dois planos de análise.

É interessante verificar que um livro recente de M. Elvira Barea (Imperiofobia y Leyenda Negra, Madrid, Siruela, 2016), situado no plano de análise destas narrativas, tenha alcançado em 4 anos mais de 100.000 exemplares, mostrando o espaço que há nas sociedades contemporâneas para estes debates, sem que aqui me pronuncie sobre o valor intrínseco deste sucesso editorial no país vizinho.

Alguém, por exemplo, ao falar de Locke como um dos fundadores do liberalismo e da tolerância refere que, ao contrário dos mestres espanhóis e portugueses de Salamanca e de Coimbra, Locke negou aos índios da américa do Norte o direito ao domínio sobre as terras que ocupavam?

Pela minha parte, tendo já superado o número de caracteres atribuído,  tenho dedicado os últimos 10 anos do meu trabalho ao resgate dos manuscritos latinos dos professores renascentistas de Coimbra e Évora, onde a tese da unidade do género humano é afirmada como garantia de direitos universais de todos os homens e de todos os povos e onde se afirma a ideia de uma autoridade universal do orbe, fundada no direito (das gentes), entendido como expressão da experiência histórica compartilhada dos povos, a par da negação da escravatura natural, defendida por Aristóteles, e da admissão apenas da escravatura legal, como era prática comum no século XVI, mas exigindo sempre rigoroso inquérito sobre a validade dos respetivos títulos (Cf. P. Calafate, Escola Ibérica da Paz, 3 vols. Coimbra, Almedina, 2015-2020).

Pedro Calafate é autor do livro «Portugal, um Perfil Histórico», publicado pela Fundação na colecção de Ensaios.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal