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Cientistas GPS #57: «Tratar prémios Nobel pelo nome e não por Senhor Professor faz toda a diferença»

Entrevista GPS #57: «Tratar prémios Nobel pelo nome e não por Senhor Professor faz toda a diferença»

Entrevista a Mariana Alves, estudante de doutoramento em biologia de desenvolvimento no Laboratório Europeu de Biologia Molecular, em Heidelberg, Alemanha.
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Pode descrever o que faz profissionalmente?

Num embrião, começamos com uma célula que se multiplica e divide até formar um organismo adulto. Durante este processo de desenvolvimento, cada célula adquire, gradualmente, características específicas que a diferenciam das outras, levando a que tenhamos, por exemplo, células da pele com características e componentes diferentes das células dos nossos cabelos, ou do nosso coração, embora em todas o ADN seja igual. É como se tivéssemos uma lista de ingredientes onde o texto é sempre igual (como é o ADN), e, dependendo de como lemos essa lista, podermos cozinhar receitas diferentes. Para cada célula ou parte do corpo se constituir de modo único, é preciso que o ADN seja “lido” e “interpretado” por outras moléculas. O que eu procuro é perceber melhor como é que esse processo funciona, e também o papel da proximidade entre moléculas neste processo.

Uso embriões da mosca da fruta, acompanhando o seu crescimento ao microscópio, com um zoom muito grande que me permite ver moléculas muito pequenas. Há ainda muito a descobrir sobre o funcionamento de tais processos, sobre a forma como realmente acontecem; graças ao desenvolvimento de novas tecnologias podemos agora responder a perguntas que nos mantiveram no limbo durante muitas décadas (como a ordem da sequência de vários eventos num processo). A mosca é um óptimo modelo para nos ajudar a encontrar a resposta à pergunta que mencionei acima; de facto o seu corpo está dividido em segmentos tal como o dos seres humanos (cabeça, tronco, abdómen, etc.).

O que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

Conseguir observar, no microscópio, moléculas e interações entre elas é como ter o super-poder de “ver o invisível”. E quando existe a possibilidade de ver estas moléculas “ao vivo” – ou seja, sem ser numa amostra “já morta”, preservada com químicos, ao invés, seguindo ao microscópio as células de um embrião de mosca que está vivo e a crescer – então é incrível. Só vendo e estudando com detalhe processos “ao vivo” é que podemos entender, de facto e com profundidade, vários dos mecanismos fundamentais que fazem com que o nosso corpo e as nossas células funcionem, numa dimensão totalmente diferente face a apenas imaginar esses mecanismos através de desenhos em livros. O facto de poder ver no microscópio moléculas que só conhecia em desenhos abstractos nos manuais é o que mais me entusiasma. Quando decidi estudar bioquímica, idealizei trabalhar no desenvolvimento de algo com aplicação relativamente rápida, como uma vacina, mas, com o passar dos anos desta minha curta carreira, percebi que o que me fascina mesmo é descobrir mecanismos novos – ou melhor, trabalhar para descobrir partes de mecanismos que não conhecemos, tentar delinear uma peça de um grande puzzle que é como a vida funciona microscopicamente.

Tratam-se os chefes de laboratório e os prémios Nobel pelo nome e não por “Senhor Professor”. Parece um detalhe, mas faz toda a diferença.

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

Depois da grande oportunidade que me foi concedida de ter um projecto próprio no grupo do Prof. Francisco Ambrósio, no IBILI em Coimbra, enquanto estudante de Licenciatura, pensei que o passo seguinte passaria por experimentar, nas férias de Verão, a investigação numa universidade como a de Cambridge, com tanta história e tradição, e com bastantes recursos também. O motivo foi desafiar-me, procurar uma oportunidade de crescimento e sair da minha zona de conforto. Queria ganhar experiência em institutos onde tivesse acesso às mais recentes tecnologias, aos mais avançados recursos. Neste período foi essencial o conselho e incentivo de vários mentores, em particular o de Carlos Faro. Fiquei fascinada com essa experiência e quis repeti-la, aí já integrada na minha tese de mestrado, que incluiu também um período curto mas muito enriquecedor num laboratório em Copenhaga. O curso natural das coisas trouxe-me ao EMBL, um instituto bastante único na Europa.

Era bastante nova quando tive a minha primeira experiência internacional e quando saí do país, razão pela qual me é difícil distinguir o que encontrei de particular por estar no estrangeiro ou o que ganhei por estar simplesmente a crescer na avenida científica. Diria que o mais inesperado, em comparação com Portugal, é a (quase) ausência de formalismos hierárquicos. Tratam-se os chefes de laboratório e os prémios Nobel pelo nome e não por “Senhor Professor”. Parece um detalhe, mas faz toda a diferença quando, no seguimento de uma palestra, se tem a oportunidade para discutir ciência com alguém com tal estatuto. A discussão entre pares é fundamental para que a ciência avance, com os formalismos a funcionarem como entraves para tais permutas. Sem esses formalismos que encontrei em Portugal tais diálogos conseguem-se de uma forma muito mais proveitosa e fluída.

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

Na verdade já trabalhei mais anos em investigação fora de Portugal do que no nosso país. Curiosamente, sigo mais de perto a actualidade da comunicação científica portuguesa do que o panorama na minha área específica de investigação. Acompanho o incremento da comunicação científica em Portugal com bastante atenção e orgulho, notando uma série robusta de iniciativas sólidas e uma determinação em tornar a cultura científica em Portugal mais forte. Portugal, com menos recursos do que muitos outros países, consegue desenvolver bastantes iniciativas, resultado da criatividade e perseverança dos seus profissionais.

Neste Verão tive a oportunidade de visitar o Instituto de Medicina Molecular e o Instituto Gulbenkian de Ciência, guardando de ambos memórias muito positivas. Admiro particularmente o facto de existir um programa como o Programa de Pós-Graduação Ciência para o Desenvolvimento (PGCD) em Portugal, porque em ciência é muito importante fazer o pay it forward; na experiência que levo de alguns anos pelo estrangeiro noto bastante uma perpetuação do elitismo e de oportunidades dirigidas fundamentalmente a quem já as traz do berço. A ciência deve ser partilhada com a sociedade e qualquer cidadão devia ter a oportunidade de participar no processo científico. Fico muito grata por ter tido o apoio dos meus pais, uma ajuda preciosa no apoio às experiências internacionais pré-doutoramento; sem esse tipo de apoio tais oportunidades ficam, infelizmente, vedadas a muitos jovens.

Já quanto à política de ciência, levando em linha de conta a minha experiência fora de portas, acho que Portugal devia voltar a focar-se nos programas doutorais e a valorizar o papel dos seus cientistas na sociedade. A natureza do trabalho científico já apresenta bastantes desafios, e com precariedade não há forma de avançar muito mais e de competir com os mais fortes institutos do mundo.

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

Um projecto excelente, que só pecou por tardio. Tem imenso potencial para parcerias várias, por exemplo as de comunicação de ciência, onde pode desempenhar um papel essencial. Carlos Fiolhais tem toda a razão quando, a propósito do GPS, afirmou: “A ciência é internacional mas a ciência portuguesa é aquela que é feita por portugueses em Portugal ou no mundo”.  Frase com que me identifico quando evoco a experiência de estar a fazer ciência no estrangeiro, ao mesmo tempo que mantenho contacto e colaboro com a comunidade portuguesa através de programas como a Native Scientist, associação onde sou voluntária e que, entre outras coisas, organiza workshops de ciência dedicados às crianças migrantes, na sua língua materna.

Foi nestes workshops que a frase citada se materializou para mim, e isso inclui também o sentido de comunidade portuguesa daqueles que fazem ciência no estrangeiro. O GPS permite congregar as duas comunidades de cientistas portugueses (dentro e fora de Portugal), através de uma rede virtual com potencial para um grande crescimento.

Fotografia de Massimo del Prete/EMBL
Consulte o perfil de Mariana Alves no GPS-Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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Portuguese, Portugal