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Opinião GPS #2 - Goa, perdida e achada

Opinião GPS #2 - Goa, perdida e achada

Artigo de Diogo Lemos, investigador no Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL).
6 min

Quem vai a Goa, vai geralmente à procura de Portugal. E, geralmente, não encontra aquilo que procura. Nas duas temporadas que passei em Goa – a primeira, em 2005, como estagiário no diário goês “O Heraldo” e a segunda, em 2015, como doutorando em ciência política – a deceção foi uma constante das minhas conversas com os portugueses que por lá encontrei: “Já não se ouve falar em português.” “Já não se come comida portuguesa.” “Já não se cuida da arquitetura portuguesa.” Enfim, “já” porque 40 e poucos anos de anexação à República Indiana parecem ter erradicado quase cinco séculos de presença portuguesa em Goa.

Confesso que eu próprio fui acometido por semelhante desilusão quando me levaram a um famoso restaurante na praia de Utorda para comer um “peixinho grelhado” e me deparei com um bicho colorido coberto por uma pasta vermelha e vertiginosamente picante. Ou quando me juntei a uma excursão ao Forte de Cabo de Rama, no sul de Goa, e dei por mim a desvendar uma ruína engolida pela selva. Estava visto que o capítulo colonial português em Goa está hoje encerrado e olvidado.

Mas este julgamento talvez seja precipitado. Em 2005, para saber notícias da Europa era ainda necessário esperar em linha num internet cafe ou numa mercearia para fazer chamadas internacionais ao ritmo das rupias que corriam no mostrador. Por isso, no dia 20 de abril desse ano, o jornal “O Heraldo” noticiou a ascensão do Cardeal Ratzinger a Papa Benedito XVI, evento que tinha decorrido no dia anterior em Roma, como se tivesse acabado de suceder – “Temos Papa!” proclamava a manchete. Mas o mais curioso não foi este intervalo, nem sequer o destaque dado à notícia. O mais curioso foi “O Heraldo”, que é o jornal inglês mais lido de Goa, optar pela versão portuguesa do conhecido anúncio. Volvidos mais de quarenta anos sobre o fim do Estado Português da Índia, o jornal apostava na associação entre a língua portuguesa, a religião católica e a população goesa. Claramente, havia quem reconhecesse mais de Portugal em Goa do que eu e os meus compatriotas.

Os recentes desenvolvimentos políticos em Goa conduzirão a uma fragmentação entre os Católicos que tornará cada vez mais difícil preservar a sua influência política. E esta divisão, por sua vez, poderá ditar que quem vai a Goa, descubra que é ainda mais difícil encontrar aquilo que procura.

A verdade é que Portugal está mais presente em Goa para os autóctones do que para nós. Talvez porque procuramos um Portugal que nunca ali existiu. Afinal, foram sempre poucos os goeses a falar português. Segundo nos conta Sebastião Morão-Correia, antigo Diretor de Serviços de Instrução do Estado da Índia, em 1959, apenas 5% a 10% da população goesa sabia falar português com fluidez (1). Por outro lado, as expressões artísticas locais nunca foram imediatamente reconhecíveis como portuguesas ou indianas. São goesas, um todo do qual Portugal faz seguramente parte, mas que as torna distintas, originais e únicas na história mundial, como argumenta Paulo Varela Gomes (2). Poderíamos falar das igrejas, do mobiliário e da arquitetura, sem esquecer também do Concanim, de feni, de “sussegad” e de tantos outros elementos da vida quotidiana goesa. Em última análise, o Portugal que podemos encontrar hoje em Goa não é aquele que somos, mas sim aquele que fomos. Certo dia, num hospício em Goa, encontrei uma mulher que ao ouvir dizer que era português levantou-se da cama e lançou-se a cantar o hino da mocidade portuguesa. Estava lá desde antes de 1961 e julgava-se ainda sob a ditadura salazarista.

No entanto, seria ingénuo ignorar a ameaça que paira hoje sobre esta Goa distinta, original e única. Basta observar os mais recentes desenvolvimentos na vida política deste curioso estado indiano – o mais pequeno em termos geográficos, mas o mais rico em termos de PIB per capita. Desde 1961, graças ao sistema de maioria simples (first-past-the-post) com círculos uninominais e graças à diversidade étnica de Goa, os Católicos têm sido os bastiões da especificidade goesa (3). Foram os Católicos que se bateram contra a anexação de Goa ao vizinho estado de Maharashtra (o que foi rejeitado em referendo em 1967) e também pelo reconhecimento do Concanim como língua oficial e pela elevação de Goa a estado, objetivos alcançados em 1987.

Contudo, a ascensão do partido da direita nacionalista Hindu, o Bharatiya Janata Party (BJP), que governa Goa desde 2012, coloca os políticos Católicos sobre crescente pressão nacionalizante. Vale a pena lembrar que a ideologia nacionalista Hindu (“Hindutva”) assevera a irredutível e exclusiva afinidade do território indiano com a religião Hindu. Deste modo, os membros das minorias religiosas na Índia – nas quais se incluem os cristãos – são considerados “intrusos” que devem abandonar o país ou aceitar um estatuto de subordinação à nação Hindu e aos seus costumes. Porém, em Goa – por frustração com as forças políticas existentes, por atração dos Brâmanes Católicos ao conservadorismo social do Hindutva, ou por puro oportunismo – o BJP conquista cada vez mais lugares na Assembleia Legislativa (Vidhan Sabha) com candidatos Católicos: em 2007 foram 3; em 2012 foram 6; e em 2017 foram 7. Mais surpreendentemente, em julho de 2019, 8 parlamentares Católicos desertaram o secularista Congresso Nacional Indiano para se juntarem ao BJP, elevando para 15 o número de parlamentares Católicos eleitos pelo BJP num total de 27 (a assembleia tem 40 lugares). Deserções são episódios ordinários na política indiana; o que é extraordinário é o BJP governar um estado com uma maioria de parlamentares oriundos de uma minoria religiosa.

As implicações destes desenvolvimentos são difíceis de prever. Há quem reveja na abertura do BJP aos Cristãos em Goa uma experiência social dos nacionalistas Hindus que poderá ser exportada para outras paragens. Há quem considere este impulso inclusivo uma operação de cosmética, na qual os Católicos de Goa serão cada vez mais submetidos aos nacionalistas Hindus. Mas um desfecho podemos já prever: os recentes desenvolvimentos políticos em Goa conduzirão a uma fragmentação entre os Católicos que tornará cada vez mais difícil preservar a sua influência política. E esta divisão, por sua vez, poderá ditar que quem vai a Goa descubra que é ainda mais difícil encontrar aquilo que procura.

Diogo Lemos é investigador no Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL). É doutorado em Ciência Política pela George Washington University, nos Estados Unidos.

Imagem de capa por Mittal Patel (Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Goa).

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(1) Maria Eugénia Pereira e Rosa Maria Faneca, “Projeto ForlinGOA – Formação em Língua Portuguesa – Goa,” in Carlos Moreira e Rosa Lídia Coimbra (eds.), Pelos Mares da Língua Portuguesa, Universidade de Aveiro, Dezembro de 2013, pp. 123-146.

(2) Paulo Varela Gomes, “As igrejas dos católicos de Goa,” Ler História, 58, 2010, 47-60.

(3) De acordo com o Censos de 2011, cerca de 66% da população goesa são hindus, 25% cristãos e 8% muçulmanos. Por sua vez, estes dividem-se em 30 a 35 castas e subcastas entre os hindus, 17 castas entre os católicos e 20 entre os muçulmanos – para além do crescente número de imigrantes internos que poderão ultrapassar a marca dos 50% da população já em 2021. Aureliano Fernandes, “Goa’s Democratic Becoming and the Absence of Mass Political Violence,” Lusotophie, 2003, pp. 331-349.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal