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Sejam bem-vindos ao pavilhão da FFMS na Feira do Livro de Lisboa

Texto de António Araújo, diretor de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
4 min

Em “O Invisível”, brilhantíssimo ensaio publicado no seu livro póstumo Aos Ombros de Gigantes, Umberto Eco interroga-se sobre o que torna reais – ou visíveis – as personagens de ficção, e até que ponto elas são mais “verdadeiras” do que as personagens históricas.

Num certo sentido, Anna Karénina ou Emma Bovary são mais “verdadeiras” do que Adolf Hitler ou Gengis Khan. De Hitler pode sempre descobrir-se que afinal não morreu no bunker, que sobreviveu à queda do Reich e que fugiu para uma ilha deserta, onde vive na companhia de Elvis Aaron Presley. Já Bovary ou Karénina suicidaram-se, ponto final. Porque assim o determinaram os autores que as conceberam, e é assim que temos de as ler e ver para sempre. Poderemos sempre fantasiar com histórias paralelas e finais alternativos, pensar que Emma Bovary fugiu com Adolf Hitler para uma ilha deserta, que aí vivem juntos e felizes, na ruidosa companhia de Elvis Presley. Mas esse final não é real nem verdadeiro, no sentido em que não corresponde à “verdade” criada por Gustave Flaubert. Chega-se assim ao paradoxo de a ficção ser mais “real” e “autêntica” do que a verdade histórica. Esta última é provisória e precária, sempre sujeita a revisão, com base em novos dados e documentos que entretanto apareçam, em testemunhos inesperados e descobertas sensacionais. Já a verdade ficcional, seja ela literária, teatral ou cinematográfica, é fixa, imutável, insusceptível de ser alterada através do surgimento de factos novos, pois não estamos no domínio dos factos, mas no reino da ficção.

Esse é o poder da escrita, a capacidade de nos fazer imaginar e ter por verdadeiras coisas que não existem e que nunca existirão, excepto na mente de quem as criou, para a mente de quem as lê. Em contraste, o cinema ou a televisão apresentam-nos imagens atrás de imagens e, com isso, exterminam a imaginação (salvo o devido respeito). É muito diferente, por exemplo, ler A Guerra dos Tronos antes ou depois de termos visto a série televisiva com o mesmo nome. Se não tivermos visto a série da HBO, seremos capazes de imaginar as personagens e as paisagens, as cenas de violência e paixão, o sangue e o sexo. Ao invés, se já tivermos visto na televisão ou no cinema a história de George RR Martin, seremos incapazes de imaginar outros rostos das personagens, outro modo de vestir e de falar ou andar, de conceber paisagens criadas apenas pela nossa imaginação. O nosso poder de efabulação está, digamos assim, "contaminado" ou "liquidado" para sempre pelo que vimos no ecrã.

É frequente dizer-se que o livro e a leitura estão em “crise”, e disso ninguém duvida. Não é preciso sequer vermos estatísticas de vendas, notícias de encerramentos de livrarias ou outros sinais de alarme. Basta entrarmos no terminal de um aeroporto ou num autocarro, numa estação de metro ou num restaurante, num qualquer lugar de espera onde centenas de pessoas olham atentas para os visores brilhantes dos seus smartphones. Muitas delas estarão a ler, sem dúvida; notícias de jornais, romances e novelas, ensaios académicos, títulos de não-ficção, mensagens de amigos ou de companheiros. Relativamente a essas, não há motivos de alarme, pois o que mudou não foi o hábito de leitura, mas o suporte ou formato em que se lê, do papel para o digital. O inferno são os outros, como diria Sartre; os outros, geralmente os mais novos, que apenas contemplam imagens atrás de imagens, milhões delas, para todos os gostos, visualizadas em micro-segundos, num filme interminável, sem contexto nem sentido. Esse exercício vertiginoso, como é fácil perceber, não só destrói a capacidade de imaginação, essencial para a leitura do que quer que seja, como terá decerto outros efeitos psicológicos e mentais que cabe aos especialistas apurar. A questão não é criticar a “estupidificação” que tal exercício representa, nem enveredar por um registo nostálgico e passadista, como se o passado das altas taxas de analfabetismo fosse um mundo perfeito e imaculado. A questão está em saber até que ponto esta nova prática social e cultural – pois é disso que falamos – irá pôr em causa o futuro da imaginação, uma capacidade humana essencial para progredirmos como civilização através da ciência, da cultura e da técnica. É isso, não menos do que isso, o que está em causa, como em causa está a nossa qualidade de cidadãos e, com ela, a vitalidade das nossas democracias.

A defesa do livro e da leitura afigura-se, assim, como um combate civilizacional e democrático. Ao longo de dez anos, a Fundação Francisco Manuel dos Santos tem dado o seu contributo para esse combate, na convicção de que o livro é o principal veículo de cultura e um instrumento insubstituível no acesso à informação. Mais de um milhão de livros foram colocados nas mãos dos portugueses, e agora, como todos os anos, iremos marcar presença na Feira do Livro de Lisboa, com um programa que pode consultar aqui.

Sejam bem-vindos ao pavilhão da FFMS na Feira do Livro de Lisboa.

António Araújo é director de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal