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Entrevista GPS #46: «Não percebo a periferia cultural de Portugal»

Entrevista GPS #46: «Não percebo a periferia cultural de Portugal»

Entrevista a Leonor Veiga, doutorada pela Universidade de Leiden, na Holanda.
5 min
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«Em Portugal não há bibliotecas de arte não-ocidental. É algo que não entendo: se tivemos tantos séculos de contacto com outras paragens, porque é que somos os únicos que não se envolveram na recolha de material sobre elas?»

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

Faço várias coisas. Ajudo artistas contemporâneos, tanto europeus como do Sudeste asiático, a projectarem a sua voz no mundo. Também tento mudar a forma como a arte é definida, o que passa por propor novas formas de ler a arte ‘popular’ e a arte ‘erudita’. Desconfio das teorias estabelecidas e afirmo-me como pós-colonial, pós-moderna e pós-etnográfica. E trabalho como guia turístico em Lisboa. Comigo, os turistas aprendem a apreciar o caráter dos portugueses e Portugal como um país com um forte sentido histórico.

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

O mais importante é tornar a arte acessível. A arte é, em geral, pouco apreciada pela sociedade. Não tem de ser assim. Por exemplo, todos os turistas gostam de azulejos e de calçada. Mas torná-los compreensíveis, enquanto símbolos de uma democratização artística que ocorreu na viragem do século XIX para o século XX, é que me importa. São manifestações portuguesas que reportam ao passado histórico, árabe e romano. E são manifestações que expressam o gosto da maioria da população, e não do sector da sociedade que viveu, durante séculos, na sombra do gosto da monarquia e do clero. São aspectos importantes do nosso Romantismo, simbolizam a preferência estética da burguesia e das classes populares. Os museus estão cheios de arte que simboliza o gosto dos poderosos, mas a nossa vida diária é definida a partir do gosto da maioria. Daí a necessidade de explicar a arte contemporânea e incentivar o interesse por ela.

A sociedade portuguesa ainda não está plenamente consciente do contributo que um académico pode dar à sociedade civil.

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

Sempre achei que Portugal tinha pouca visão internacional. E embora sinta o mesmo noutros lugares – sim, somos todos extremamente locais – em Portugal, de facto, não há bibliotecas de arte não-ocidental. É algo que não entendo: se tivemos tantos séculos de contacto com outras paragens, porque é que somos os únicos que não se envolveram na recolha de material sobre elas? Tanto para escrever o mestrado como o doutoramento, tive de recorrer ao estrangeiro. Seria impossível escrever sem acesso a bibliotecas completas. Não percebo a periferia cultural de Portugal.

Por exemplo, quando cheguei a Leiden, falava-se muito do Brasil. Que eu tinha sido uma colónia holandesa. O quê? “Mas como se atrevem!”, pensei eu. Então, fiz um pouco de investigação e, de facto, a zona do Recife foi colonizada pelos holandeses durante 30 anos. Mas nesse curto espaço de tempo pintores holandeses produziram as únicas pinturas do mundo que representam o índio brasileiro e relevam as suas práticas de canibalismo. Estas pinturas feitas por Albert Eckhout estão hoje no Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhaga. Tudo isto é interessantíssimo.

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

O panorama científico português está a atravessar um bom momento. Continuo a sentir que, para tal, tanto contribuíram nomes como os dos Professores António Damásio ou Boaventura de Sousa Santos (e muitos outros que poderia aqui mencionar) pela sua capacidade de projectar o país, como o do Professor Mariano Gago, pela política científica que lançou. Todos foram responsáveis pelo lançamento de uma nova imagem, mais consentânea com a capacidade do país. A nível internacional, Portugal começa a ser olhado com curiosidade, facto corroborado pela afluência de turistas e de investidores estrangeiros.

Mas também considero que a sociedade portuguesa ainda não está plenamente consciente do contributo que um académico pode dar à sociedade civil. Os académicos têm ficado confinados aos laboratórios ou às universidades, e passam pouco do seu potencial para as instituições governamentais ou privadas. Numa entrevista aqui no GPS, o Dr. Nuno Boavida manifestou exactamente esta possibilidade, a do contributo dos académicos. E creio que a sociedade o deve exigir, até porque vivemos tempos de mudança. Lembro-me de há um ano e meio ter manifestado ao Pedro Rocha Vieira, CEO e Fundador da Beta-i, exactamente esta possibilidade: a de ter um académico envolvido na sua incubadora de start-ups como uma mais-valia para a afinação cuidada dos projetos, de pedidos de financiamento, etc. Qualquer académico, independentemente da área de onde venha (no meu caso, a História de Arte), pode e sabe contribuir para maximizar esforços que a área da inovação precisa.

Em relação à minha própria disciplina, a História de Arte, creio que Portugal atravessa momentos difíceis. Basta olhar para a recente medida no currículo das Belas-Artes, em que a História de Arte deixou de ser obrigatória. Para mim, que sempre considerei que a disciplina era desigual e partidária, dando somente relevância aos artistas ocidentais e negligenciando toda a arte do mundo não-ocidental, ver a disciplina ser anulada, vê-la reduzida a pó, é mesmo muito problemático. O que devemos exigir é mais História de Arte. Neste contexto, a história de arte não-ocidental começa a ganhar cada vez mais adeptos em Portugal. Mas dar-lhes espaço de intervenção é que se tem revelado difícil. Não só não há universidades suficientes, como os especialistas saem de Portugal em busca de oportunidades que aqui ainda não existem.

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

Desde que encontrei a plataforma tenho tido com ela uma relação de interesse. Inscrevi-me imediatamente, mas no início preferi acompanhar o seu desenvolvimento sem me envolver. Agora, vendo a excelência dos conteúdos que partilham, resolvi participar de uma forma mais activa. Creio que é deste tipo de iniciativas que Portugal precisa para se projetar. A palavra de ordem, para mim, neste momento, é: partilhar. E considero que os tempos da discrição e da humildade nacional têm de ser deixados para trás. Portugal é um país com uma contribuição a dar ao mundo, e a minha geração está pronta e capaz de veicular essa capacidade.

Consulte o perfil de Leonor Veiga no GPS-Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

Fotografia de Tiago Miranda.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Autor
Portuguese, Portugal