A
A
Entrevista GPS #12: «Portugal deveria poder beneficiar do trabalho dos cientistas emigrantes»

Entrevista GPS #12: «Portugal deveria poder beneficiar do trabalho dos cientistas emigrantes»

Entrevista a Teresa Marques, filósofa que trabalha como investigadora na Universidade de Barcelona.
10 min
Autor
Nascida em Lisboa, Teresa Marques está a desenvolver investigação em filosofia da linguagem na Universidade de Barcelona. Esta entrevista foi realizada no âmbito do GPS - Global Portuguese Scientists (www.gps.pt).

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

Sou filósofa, com especialização em filosofia da linguagem. Sou investigadora no Grupo LOGOS na Universidade de Barcelona desde Janeiro deste ano. Entre 2014 e 2016 trabalhei com o grupo de filosofia do direito da Universidade Pompeu Fabra também em Barcelona, com um projecto Marie Curie da Comissão Europeia. O projecto Marie Curie visava explicar a natureza do desacordo normativo em geral, e a natureza de alguns desacordos legais em particular. O desacordo normativo e sobre valores suscita um puzzle: aparentemente, podemos ter disputas persistentes sobre questões de valores ou normativas que resistem a tentativas de resolução, apesar de podermos estar de acordo sobre todos os factos descritos.

O novo projecto que acabo de iniciar na Universidade de Barcelona é financiado por fundos do Ministério Espanhol da Economia e Desenvolvimento e do FEDER, ao abrigo de um programa dedicado aos chamados “desafios societais”. O projecto desenvolve alguns temas do projecto anterior, e tenta responder a várias perguntas, como por exemplo: de que falamos quando falamos de normas ou de valores? Como podemos dialogar – conversar, entender-nos, discordar – sobre problemas normativos ou de valores dada a grande variação interpessoal e intercultural nos sistemas e padrões que seguimos? E como explicamos o facto de que quando falamos sobre valores ou normas parecemos transmitir emoções, e motivar os outros a agir? Para responder a estas perguntas, o meu projecto investiga teorias contemporâneas de semântica e pragmática, e informa-se dos resultados da investigação em áreas adjacentes (em linguística e psicologia, na investigação sobre emoções, etc.) Estas perguntas são centrais numa área da filosofia designada metaética – que reflecte sobre a natureza da linguagem e do pensamento éticos. Mas as questões são mais gerais do que a ética, e é mais correcto falar de questões metanormativas.

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

As pessoas fora da filosofia costumam ter uma de duas reacções ao meu trabalho. Por um lado, pensam que a filosofia é conversa de café. Por outro lado, quando menciono coisas como “valores” ou “normas”, tendem a pensar que a sua opinião está acima de qualquer reflexão filosófica. Um aspecto fascinante na filosofia da linguagem, em particular da linguagem normativa e avaliativa, é que podemos observar o nosso objecto de estudo permanentemente. Outro aspecto entusiasmante, mas algo assustador, prende-se com a importância de compreender os efeitos de aceitar que certas maneiras de falar são permissíveis. Passo a explicar o que quero dizer. Nós comunicamos o valor de coisas, de acções, e de pessoas de muitas maneiras. Por vezes fazemo-lo directamente, outras vezes indirectamente. A forma mais simples de comunicar o valor de uma coisa é dizer directamente que essa coisa é boa (ou é má). Mas existem muitas outras formas indirectas de comunicar o valor de algo ou de alguém. Estas formas indirectas de comunicar o valor das coisas são mais difíceis de questionar, ou, pelo contrário, são mais fáceis de aceitar sem objecção. Por exemplo, a palavra ‘imigrante’ aparentemente é uma descrição neutra da condição de alguém que, como eu, migrou para outro país para trabalhar. Mas em muitos jornais britânicos (e não só!) a palavra ‘imigrante’ aparece associada a ‘ilegal’, ou à referência ao nível de desemprego no país, ou aos custos adicionais para a segurança social. Os imigrantes são muitas vezes descritos como ‘bandos invasores’ que escondem elementos perigosos (como terroristas). Isto contrasta com a descrição dos cidadãos britânicos que vivem fora do Reino Unido como ‘expats’, mas não como ‘emigrantes’.

Dou-vos outro exemplo concreto. Existe um projecto coordenado por Susan Benesch, na Universidade de Harvard, que oferece uma taxonomia dos factores que constituem o discurso perigoso. Este projecto é essencialmente um trabalho em sociologia, história e direito, e identificou como o discurso perigoso de ódio está correlacionado, e antecede, actos de violência de massa contra grupos alvo. Tipicamente, envolve o uso de insultos, de linguagem que desumaniza, e de palavras codificadas (que são mais difíceis de detectar). Não é um discurso que explicitamente diga que tais e tais pessoas são más. Os investigadores no projecto mostram como esse tipo de discurso se manifestou na Alemanha nos anos 30, no Ruanda e na antiga Jugoslávia nos anos 90, e mostram ainda como se está a manifestar neste momento nos EUA e na Europa, na maneira como políticos, e meios de comunicação, descrevem precisamente os imigrantes, os refugiados e os estrangeiros. Infelizmente, também se está a verificar um aumento do número de ataques a minorias étnicas e a emigrantes nos EUA ou no Reino Unido. Na União Europeia, por exemplo na Hungria, a demonização da influência dos estrangeiros no país levou a actos que vão da construção de vedações para impedir a entrada de refugiados ao voto recente no parlamento húngaro para encerrar a CEU (Central European University), uma universidade privada com um corpo docente internacional e fundada por George Soros. O que o meu trabalho tenta fazer é explicar os mecanismos linguísticos e pragmáticos da linguagem que permitem que comuniquemos valores positivos e negativos directa e indirectamente, e tenta também encontrar a melhor explicação teórica do pensamento normativo e avaliativo que explique a sua força motivadora – o que leva as pessoas a agir.

Não creio que seja realista, neste momento da minha carreira, esperar voltar a trabalhar em Portugal.

Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?

Saí de Portugal para estudar pela primeira vez em 1995. Fui para a Escócia atraída por um programa de pós-graduação conjunto das Universidades de St. Andrews e de Stirling. O programa era (e é) exigente, e permitiu-me complementar a minha formação de base. Quando saí de Portugal não havia nenhum programa de pós-graduação em filosofia comparável. Sempre pensei que voltaria a trabalhar em Portugal. Tive durante muito tempo a intenção de contribuir para treinar jovens filósofos em Portugal, e de fortalecer a posição da filosofia feita em Portugal no contexto europeu e internacional (na realidade, continuo a fazer uma pequena contribuição para isso, como membro da direcção da ESAP - Sociedade Europeia de Filosofia Analítica -, e por enquanto ainda como co-directora de uma revista internacional de filosofia editada na Universidade de Lisboa). Durante alguns anos fui investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Lisboa, no Centro de Filosofia, com financiamento da FCT. Depois estive um ano com um pós-doutoramento na Universidade de Barcelona, e regressei a Portugal com um contrato Ciência 2008, novamente no Centro de Filosofia. Como muitos investigadores portugueses sabem, o programa Ciência inicialmente parecia ser um programa do género dos programas de tenure track (que levam a contratos sem termo certo) que existem nos EUA ou no Reino Unido. Mas pouco depois do início do programa tornou-se evidente que os contratos nunca seriam tenure track, devido à crise financeira e à falta de recursos das Universidades. Antes do final do contrato Ciência comecei a concorrer a todas as alternativas: desde os contratos de investigador FCT a outras bolsas de pós-doutoramento, e às (poucas) vagas de professor auxiliar que entretanto abriram. Arrisquei ainda concorrer a uma bolsa Marie Curie, a qual me foi concedida. Foi graças a esse contrato que ingressei na Universidade Pompeu Fabra, onde estive até 2016. Os motivos que me levaram a emigrar recentemente foram, basicamente, o facto de não conseguir trabalho em Portugal. O projecto que dirijo neste momento na Universidade de Barcelona permite-me como investigadora principal contratar-me a mim mesma. Tenho a intenção de concorrer a outras posições em Espanha. Não creio que seja realista, neste momento da minha carreira, esperar voltar a trabalhar em Portugal. O que talvez seja mais “inesperado” no estrangeiro é o nível e a quantidade de produção académica que se espera dos investigadores e professores universitários, o que é manifesto por exemplo na Universidade de Barcelona, que está entre os melhores 50 departamentos de filosofia na lista (ranking) QS. 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

Não tenho informação suficiente para apreciar a fundo o panorama geral. Em 2014, as decisões do anterior governo pareciam revelar uma intenção de destruir o progresso que se tinha conseguido fazer nos últimos 20 ou 25 anos. Conseguiram afastar muita gente, apesar de não terem sido inteiramente bem sucedidos, e principalmente conseguiram que pessoas que estavam dispostas a regressar e radicar-se em Portugal tenham acabado por emigrar novamente. Imagino que haja muita gente como eu: com um percurso estabelecido, com mais de 40 anos de idade, com família e filhos, e portanto com menos disponibilidade para voltar a mudar de país. Por vezes chegam-me artigos de opinião escritos por investigadores em áreas diversas que revelam um cepticismo generalizado sobre o sistema universitário português, que continua a ser essencialmente endogâmico, a resistir a critérios competitivos internacionais, etc. Sobre a minha área, o que me parece é que as bolsas de pós-doutoramento, ou os contratos de investigador FCT, são medidas transitórias que mascaram o problema de fundo. Por um lado, os centros de investigação e departamentos melhoraram os índices de produtividade ao contratarem temporariamente pessoas que, na sua maioria, se formaram fora do país. Por outro lado, o corpo docente permanente continua a ser principalmente (com algumas excepções) composto por pessoas que não fizeram nenhuma etapa da sua formação fora de Portugal, que não estão expostas aos processos académicos internacionais (por exemplo, publicar em revistas internacionais com avaliação anónima por pares), não estão a par e não mantêm um diálogo aberto com o trabalho de investigação feito noutros sítios. Isso é possível porque o seu progresso profissional não requer o mesmo tipo de trabalho que se requer noutros países. Portanto, apesar de ter havido uma melhoria evidente nos últimos 25 anos, receio que essa melhoria não se tenha solidificado dentro da própria universidade portuguesa, e que qualquer perturbação ao sistema de financiamento de contratos temporários da FCT tenha o efeito de destruir uma boa parte dos grupos e centros de investigação, como se viu em 2014. Haveria bastante a dizer sobre os processos de avaliação quer para financiamento de projectos, quer para contratações, quer para o progresso na carreira universitária, mas penso que o que expliquei acima é suficiente.

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

Como outros entrevistados, penso que o GPS é uma iniciativa importante que permite divulgar em Portugal o trabalho dos investigadores no estrangeiro, sejam cientistas ou académicos das humanidades como é o meu caso. Existe uma grande ignorância daquilo que os investigadores portugueses fazem pelo mundo, e acho que é importante ter a correcta perspectiva da variedade e dimensão do nosso trabalho de investigação. Não tenho dúvidas de que a melhor forma de divulgar e consolidar em Portugal o trabalho dos investigadores portugueses no estrangeiro seja oferecer-lhes a possibilidade de contratos de trabalho estáveis, e boas condições de trabalho. Mas penso que devemos evitar representar o trabalho dos investigadores fora do país sob a bandeira da ciência portuguesa no mundo. Isto seria uma ilusão, e é um desrespeito pelos investigadores. A ciência, e a investigação em geral, não tem nacionalidade. Não há matemática, ou filosofia, ou física, ou química, portuguesas. Os que saímos do país fomos atraídos pela possibilidade de aprender, de investigar, e de trabalhar. Em alguns casos, saímos com o apoio de bolsas nacionais, quase sempre da FCT, a quem estaremos sempre gratos. Mas a decisão de emigrar implicou sacrifícios pessoais, e o trabalho que fazemos não representa o país – representa a nossa dedicação, as instituições que nos empregam, e principalmente a disciplina que elegemos. Merece ser conhecido e apreciado, e Portugal deveria poder beneficiar do nosso trabalho, essa devia ser a contrapartida do investimento nacional que foi feito na nossa formação.

Consulte o perfil de Teresa Marques no GPS – Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Autor
Portuguese, Portugal