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Capa artigo Buçaco bosque sagrado Mário Beja Santos

Uma empolgante viagem à Mata Nacional do Buçaco

Entre numa viagem no tempo na Mata Nacional do Buçaco, neste artigo de opinião sobre o livro «Ama o precipício».
6 min

Logo o título é digno de um romance e, acredite o leitor, que a viagem proporcionada por Susana Neves mete história, botânica, religião, algo mais, mas a estrutura óssea da obra tem o clímax de um belíssimo romance histórico.

Nunca uma mata, neste caso o bosque dos carmelitas descalços, teve o condão de nos agarrar pela gola desde a primeira página até chegarmos à explicação do título, algo parecido com a procura da elevação extrema, o acesso ao sagrado assumindo frontalmente todos os riscos que lhe estejam associados, a fusão do ego com o divino.

Já na despedida da sua viagem, a autora ainda adianta: «Em termos ontológicos, o amor ao precipício supõe não ter medo do sagrado, ou seja, da sua profundidade, inexplicável racionalmente, e da vida que também o manifesta com subtil intensidade. Significa não ter medo de correr todos os riscos, exceto o risco maior de não viver já neste mundo na presença insondável e deleitosa da clara luz do Divino, mesmo quando esta se revela sob a forma de uma sombra.»

Nunca um bosque teve o condão de nos agarrar pela gola desde a primeira página até chegarmos à explicação do título

É mais do que surpreendente o tratamento do tema, uma diacronia etnobotânica de enredo um tanto enigmático que irá desembocar, após a extinção das ordens religiosas, num Buçaco de vilegiatura perto de uma estância termal e numa dessas histórias de palácio mágico, tudo começara com a ideia de um pavilhão de caça real e acabou no expoente máximo da arte neomanuelina, de paredes meias com o templo religioso dos carmelitas. É este o enredo surpreendente de Ama o precipício, Viagem à Mata Nacional do Buçaco, por Susana Neves, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022.

Tudo começa com a chama mística de Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz, os criadores dos carmelitas descalços, coube-lhes criar numa serra um local de recolhimento, assim começa a história dos monges do Deserto dos Carmelitas Descalços da Província de São Filipe de Portugal, ali se posicionaram, a mais que 500 m de altitude, entre práticas de ascese e o plantio de milhares de árvores. E a autora recorda que o cedro-do-buçaco não é mais do que o cipreste-do-méxico.

Assim nasce o ideal do monte Carmelo português, em pouco tempo no que fora uma quase deserto nesta serra que pertencera aos monges beneditinos do Mosteiro da Vacariça, e onde houvera arborização pelos frades eremitas da Confraria da Nossa Senhora da Graça, nasceu um coberto florestal quase paradisíaco, em largas dezenas de hectares, murados a toda a volta, era uma cerca impeditiva a quem se atrevesse a destruir a presença do sagrado num bosque um tanto místico, um tanto mágico.

Em pouco tempo, no que fora uma quase deserto, nasceu um coberto florestal quase paradisíaco, em largas dezenas de hectares, murados a toda a volta.

Deu-se, de certo modo, a rotura desta cerca por razões de imperativo nacional, pois, como é por todos sabido, por aqui andou Wellington que derrotou em 27 de setembro de 1810 o contingente napoleónico comandado por Massena, até os carmelitas intervieram, procurando tratar dos feridos de ambos os lados.

A Mata do Buçaco é também uma história de investigação científica e de amor à natureza, não é por acaso que está incluída, desde 2016, na lista indicativa para classificação a Património Mundial da UNESCO.

Que belo enredo escolheu a autora para esta reportagem, a visita em janeiro de 1800 de dois alemães, um botânico, outro médico, a Mata era internacionalmente conhecida, e o leitor não deixará de se surpreender com o relato desta viagem e de outras histórias anteriores, tudo para entrarmos no processo fundacional, na importância atribuída a certas espécies arbóreas, entrará em cena San Juan de la Cruz e o seu corpo incorrupto que será retalhado para dar relíquias; iremos ouvir falar em ervas medicinais, dignas de boticas, havia a preocupação de tentar curar o morbo céltico, a sífilis, assunto que hoje se resolve com escassos euros em tratamento com tetraciclinas; e entramos no coração do Carmelo, o Convento de Santa Cruz do Buçaco e o seu ideal de vida baseado na humildade, capacidade de trabalho e pobreza, tudo a reverter para alegria e exemplaridade.

A Mata do Buçaco é também uma história de investigação científica e de amor à natureza, não é por acaso que está incluída na lista indicativa para classificação a Património Mundial da UNESCO.

O que era vida serena conhece uma interrupção tumultuosa, como jamais se suspeitara, ali bem perto caminham as tropas napoleónicas, no convento estará albergado, de 21 a 29 de setembro de 1810, o futuro duque de Wellington, então visconde, o contingente anglo-luso vai limpar a despensa monacal por completo, acresce que os religiosos também alimentam soldados e camponeses das aldeias próximas.

Observa a autora: “Nos dias seguintes à batalha não restará nem uma couve, nem um feijão na horta, nem uma laranja nos dois laranjais. No olival, em vez de se apanhar azeitonas, enterram-se os mortos. Muitas árvores são abatidas, incluindo cedros sagrados e carvalhos seculares, para prover às necessidades do combate, outras ficarão mutiladas pelo impacto das explosões.”

A Mata fora transformada numa base militar, tinha inicialmente duas portas, passará a ter seis; rapinava-se livremente, matava-se, violavam-se mulheres de todas as idades. É tocante o relato do resgate dos feridos, excecionalmente a oficialidade francesa mostrará respeito aos frades pela compaixão exercida junto dos seus feridos.

Assim nos vamos aproximando do luso termal e da atração da Mata do Buçaco. Há descrições deliciosas, entra em cena o Palace Hotel com os seus visitantes ilustres que deixaram registo da estadia e da visita à Mata. É neste momento que a autora entra em cena, estamos em 2017, ela parte do Luso, desce uma densa neblina da Serra do Buçaco, caminha solitária por esses itinerários, está deliciada a observar espécimes arbóreos multisseculares de grande porte, visita ao convento, conversa com a funcionária, de novo vem à tona a mutilação dos corpos dos santos fundadores para obter relíquias.

A autora regressa ainda nesse ano e vai falar-nos de reis que foram até ao Palace Hotel, de uma conversa tensional entre a rainha D. Amélia e a sua secretária, tudo a propósito da descrição da derrota das tropas francesas. A secretária protestava, alegando que em toda a parte os franceses haviam mostrado «bravura e serem dignos da sua pátria«, e a rainha D. Amélia ripostando que, apesar de reconhecer nos franceses bravura, estes haviam sido derrotados pelas tropas francesas e que madame não se esquecesse que Portugal era a sua segunda pátria e ela rainha de Portugal.

Também se fala das compras que Salazar fez para a sua quinta em Santa Comba Dão, tudo pagava, resta a correspondência entre o administrador do Buçaco e Salazar. A última visita é em plena pandemia e em 1 de maio de 2021, debaixo do monumental cedro-do-buçaco do jardim do Príncipe Real, onde se sentou John le Carré, quando escritor britânico veio à procura de argumentos para o seu romance A Casa da Rússia, ali a autora disserta sobre o amor ao precipício, melhor desfecho não podia haver para uma reportagem que nos prende e nos incita a ver a Mata do Buçaco na sua dimensão sublime, para além daquele espetacular arboreto.

Uma magia da escrita a pedir leitura obrigatória.

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