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As três primeiras semanas

As três primeiras semanas

Esta crónica de Paulo Guinote é o primeiro de quatro retratos sobre a forma como a pandemia alterou o dia-a-dia da sua família: um casal de professores com uma filha no secundário, fechados em casa.
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Quero deixar muito claro que as escolas e os professores não estão na primeira linha de combate à propagação do vírus e do tratamento dos doentes infectados com a Covid-19, pelo que não pretendo transmitir qualquer mensagem de extremo dramatismo.

Quero sim, revelar o retrato do quotidiano alterado de um casal de professores com uma filha a frequentar o Ensino Secundário. Que fique claro, até pelo conhecimento mais ou menos directo do que passa quem está na linha de fronteira entre a vida e a morte, que este é apenas o retrato de quem, devido ao confinamento, se viu na necessidade de mudar todas as suas rotinas e metodologias de trabalho no primeiro sector a parar (e muito bem) por causa do novo coronavírus. São, felizmente, retratos de vida e não de vida e morte.

Não foi por acaso que o encerramento das escolas foi a decisão que precedeu quase todas as outras que levaram ao actual estado de emergência, tendo suscitado alguma hesitação e evidente polémica. Mas era uma medida inadiável pelo seu enorme efeito na redução da interacção social e no trânsito de pessoas, para além de toda a problemática relacionada com o facto das crianças e jovens poderem ser portadores assintomáticos do vírus e responsáveis involuntários pela sua propagação.

Mas como se viveu este período inicial de adaptação a uma nova realidade numa família que tem a sua vida organizada em torno dos calendários, horários, rotinas e espaços da Educação, com três elementos em três escolas distintas?

Com uma aluna do Secundário, professora do Secundário e um professor do Básico? Como foi o confinamento forçado ao espaço doméstico e à necessidade de organizar novas rotinas, horários, comportamentos? Quais as ansiedades, dificuldades, tentativas, erros, sucessos e “inconseguimentos”?

Há que reconhecer, desde logo, que tudo se fez em condições razoavelmente favoráveis em termos de equipamentos e espaços. Aluna e professores puderam ter espaços próprios e equipamentos disponíveis para adaptarem o seu trabalho às novas condições. Embora, e isso poderá ser matéria para outras linhas, cada um tenha lidado com realidades e soluções bastante diversas, o traço comum foi que os primeiros dias se passaram numa espécie de ligação non-stop às suas redes de teletrabalho e comunicação.

Foram dias especialmente exigentes para quem teve de erguer, desde casa e nem sempre com uma orientação clara sobre o que fazer, uma rede de comunicação quase permanente para esclarecer os alunos e respectivas famílias sobre a situação, sobre como iria decorrer o final do 2º período, que implicações poderia ter (ou não) na avaliação a suspensão das “actividades lectivas presenciais”.

Artigo de Paulo Guinote

Os primeiros desesperos e “crises” do novo quotidiano surgiram quando ocorreram episódios que em outros contextos seriam menores e de fácil resolução, mas que agora se tornavam muros a ultrapassar com uma inédita dificuldade.

Na primeira semana, por exemplo, foi evidente como as redes de banda larga não estavam à espera do acréscimo de acessos matinais a partir de algumas zonas residenciais e foram horas com as ligações a irem abaixo várias vezes no espaço de poucos minutos, inviabilizando um trabalho contínuo e a realização de algumas operações mais exigente. Pelo que a opção mais sensata foi a de, a partir de um dado momento, desligar os equipamentos, mesmo se a cabeça continuava em permanente on.

Com o uso em sobrecarga, alguns equipamentos começaram a queixar-se e no lugar deles eu faria o mesmo. Quando um carregador mais idoso feneceu, não tendo alma para entregar e ser substituída pelo seu criador (e porque as lojas físicas já estavam fechadas e as encomendas só eram garantidas para 48 horas úteis ou mais), foi uma desesperada busca por outro compatível nas caixas empilhadas na garagem com material antigo, já que a entrada da alimentação não era a certa para aproveitar outro carregador em uso.

E ainda há o momento em que, por aquelas artes diabólicas que se manifestam sempre em momentos de urgência e fins de semana, desaparece da memória humana e digital uma palavra-passe que só pode ser recuperada pelo administrador do sistema e assim se torna impossível aceder a tudo o que tinha ficado alojado no grupo X ou fora recebido no chamado “mail institucional” para preparar uma reunião na manhã de 2ª feira?

Tudo acaba por se resolver, nem que seja deixando o tempo passar, nem se percebendo se passa devagar, tão devagar, até chegar a solução, se muito depressa, tão depressa, até chegar o momento em que é inadiável ter tudo pronto.

As três últimas semanas foram um pouco assim, mas também muito mais. Que alunos, famílias e professores viveram com uma intensidade desconhecida, a par de tudo o resto que cobriu o quotidiano de incertezas, inseguranças e medos.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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Portuguese, Portugal