A
A
Puzzles

Puzzles

Artigo de Sílvia Curado a propósito de «Cientistas portugueses», o novo livro escrito por David Marçal.
3 min
«Tal como eu, muitos têm escolhido um percurso fora de Portugal e têm tido o privilégio de ter uma experiência académico-profissional em instituições internacionais de renome. A internacionalização da ciência portuguesa é hoje evidente.»

 

Embora não saiba precisar qual o dia, o mês ou ano, sei que começou cedo esta minha paixão pela investigação científica. Uma paixão que se entranha e nos leva a percorrer mundo. No meu caso, não só o das moléculas, células, orgãos e organismos, mas também diferentes países - Noruega, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos. Depois de São Francisco, actualmente em Nova Iorque, na New York University School of Medicine, tenho a clara sensação de ter vivido muitas vidas – uma em cada cidade onde vivi. Cada uma dessas tem contribuído para o meu desenvolvimento, não só científico como pessoal. Nos Estados Unidos, rapidamente aprendemos que nothing comes for free. Este percurso tem também o seu preço. Mais do que os bilhetes de avião, o mobilar de cada nova casa, o reiniciar de amizades em cada cidade, o faltar a festas de família ou casamentos, o luto não partilhado vivido à distância, a falta das brincadeiras com o sobrinho e das mãos dos pais, há o sacrifício daqueles com quem normalmente não falamos: quem deixamos.

Em cada novo país começamos a construir um novo puzzle. Construimo-lo com novas peças que este novo início nos traz: novas amizades, novas rotinas, novas descobertas. Já os que deixamos, esses terão de manter um puzzle onde faltará sempre uma peça. Não se iluda quem pense que só aqueles que partem têm que reaprender a viver. Serve este texto de homenagem a estes nossos heróis nem sempre reconhecidos, que nos bastidores contribuem também para o desenvolvimento dos cientistas portugueses.

Tal como eu, muitos têm escolhido um percurso fora de Portugal e têm tido o privilégio de ter uma experiência académico-profissional em instituições internacionais de renome. A internacionalização da ciência portuguesa é hoje evidente. A PAPS (Portuguese American Postgraduate Society), a que presido, fundada nos Estados Unidos há 20 anos, conta hoje com quase 2.000 membros. Alguns numa fase de carreira mais júnior e muitos outros já em posições de destaque e de alta responsabilidade em instituições, organizações ou empresas de alta relevância. A ideia do American dream, mito ou não mito, perpetua-se, e a América do Norte continua a atrair portugueses graduados que continuam a escolher os Estados Unidos ou Canadá para parte do seu percurso.

Embora inicialmente com maior foco na área das Ciências da Vida, a PAPS integra hoje membros nas mais diversas áreas (Ciências da Vida 21%, Ciências Exatas 8%, Medicina 5%, Engenharia 8%, Arte 9%, Gestão, Economia e Direito 24%, e outras), refletindo uma nova geração. Embora muitas vezes saindo sem saber se ou quando retornarão aos puzzles que deixam, tendo a olhar para este fluxo mais como uma circulação de conhecimento, e menos como a tradicional ideia de fuga. E não é só o conhecimento que circula, são também as emoções. Os cientistas, por mais racionais que sejam, são também pessoas – bem ilustrado por David Marçal no livro Cientistas Portugueses. Vejo este seu novo livro como mais uma prova do seu interesse e carinho pelos cientistas portugueses que, mais longe ou mais perto, deverão impreterivelmente fazer sempre parte do puzzle da Ciência de Portugal.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal