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Português para estrangeiros

O viajante Gonçalo Cadilhe escreve sobre uma sensação estranha: a de regressar a casa das suas viagens, depois de muito tempo sem ouvir português. E da dúvida que lhe surge: «Esta é mesmo a minha língua? Assim áspera, arranhada, dura. Sim, é isso, é uma língua dura. É, olha, eu não falo assim, pois não?»
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Reveja o Fronteiras XXI «Em Português é que nos entendemos»

Isto está-se sempre a passar comigo. Então é assim. Estou umas semanas sem ouvir falar português. Tipo, uma viagem individual, à minha maneira, mochila às costas, topas? Naqueles lugares para onde não vão outros portugueses, nada das cenas da pulseirinha na República Dominicana, sei lá, uns percursos de trekking no Nepal ou uma surf trip na Tasmânia, enfim, passam-se então umas semanas e tu não ouviste falar nem falaste português. E de repente na sala de embarque já do voo de regresso a casa, sei lá, num hub tipo Amsterdão ou Frankfurt, estás para embarcar na TAP e começas a ouvir outros portugueses.

Pela primeira vez em muito tempo. É uma sensação bué de estranha. Perguntas: mas esta é mesmo a minha língua? Aparece assim áspera, arranhada, dura. Sim, é isso, é uma língua dura. Ah, então se estiveres a regressar de um desses países de fala doce e cantada, tipo, a Indonésia ou a Nicarágua, ainda te bate mais esta sensação. É, olha, eu não falo assim, pois não?

Ainda há uns dias atrás estava em Itália e estava a ser atendido numa loja e a dona percebeu pelo meu sotaque que eu era estrangeiro e perguntou de onde, lá lhe disse, e ela, oh adoro ouvir falar português, e eu achei logo que ela não sabia o que estava a dizer, isto por causa do que eu te disse lá atrás da cena da língua arranhada, e então perguntei onde é que ela ouvia falar português, mas já sabia o que ela ia responder, e respondeu, tenho uma amiga brasileira e quando ela fala ao telefone com a família, etc… estás a ver, é sempre a mesma coisa, em todo o lado adoooram o português e estão a pensar que em Portugal andamos a cantar as palavras, e não tem nada a ver, o que eles gostam é do brasileiro. Se achas que estou a exagerar, então começa a reparar nisto: sempre que estás a viajar e te parece ouvir portugueses a falar na distância, aproxima-te e se calhar até para meteres conversa e afinal descobres que são russos. Então em Itália e em Bali está sempre a acontecer, está cheio deles, dos russos, e eu estou sempre a confundir. Lindo mito à escala mundial, este de que nós temos uma “parlata” doce…

Outra coisa que já reparaste mesmo que não tenhas viajado muito é o nome dos lugares que foram baptizados pelos portugueses, e a maneira como depois os outros não os sabem dizer. Fica cá uma salgalhada. Tipo, o cabo mais a sul de África, onde o Atlântico e o Índico se encontram, chama-se Agulhas, e chama-se assim em todas as línguas, não é tipo o cabo da Boa Esperança que depois nos mapas aparece “cape of Good Hope”, não, é mesmo “Agulhas” nos mapas todos, e eu até pensava que ia lá ver umas falésias pontiagudas, afinal, não há falésias nenhumas, oh pá, até é dos lugares mais chatos, zero épico, então lá fui ao cabo Agulhas e o nome vem da inclinação da agulha na bússola, um desvio qualquer quando se navega ali ao largo, os nossos marinheiros eram tramados, não lhes passava nada despercebido, mas nem vale a pena agora entrar no tema do costume, o da decadência da nação, tipo: “o que aconteceu à raça que descobriu o mundo”, já sabemos o que aconteceu, não voltou para Portugal, ficou lá a curtir a boa vida dos trópicos, mas enfim estava-te a dizer do cabo Agulhas, e se quiseres mesmo ir até lá tens que perguntar onde fica o cabo “agoulásh”, é assim que se diz, a palavra é nossa mas eles nem a sabem pronunciar.

Só para terminar este exercício de alteração de perspectiva, conto-te uma cena que se me passou pela cabeça, agora, na Grécia. Fui ver uma ponte, a sério que fui lá para isso, não foi para andar com a pulseirinha no resort, enfim, lá cheguei a Negroponte, era assim que na Europa nós chamávamos na Idade Média a esta cidade, que eles, os gregos chamam outra coisa. E o que me bateu foi que eles nunca escreviam a cidade da mesma maneira. Quer dizer, em grego, no alfabeto deles, escreviam sempre igual. Mas ao traduzir para o nosso, o latino, de cada vez que têm que escrever, arranjam uma maneira diferente: Chalcis, Kalcida, Chalkida, Cálcis, Cálquida, eu sei lá, e imagina se quando eles escrevem no alfabeto grego “Portugal” ou “língua portuguesa” e de cada vez que escrevem é diferente? E os chineses no seu alfabeto? E os burmeses? E os israelistas? Então fiquei a pensar que já chega sermos nós a tratar mal a nossa língua, não é preciso eles também o fazerem.

 

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O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal