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Imagem ilustrativa para entrevista a Henrique Burnay sobre regulamentação do lóbi

«Os políticos têm de ter consciência de que podem ser responsabilizados por aquilo que decidem»

A legislação para regular o lóbi tem marcado o debate parlamentar. A Fundação entrevista Henrique Burnay, representante de interesses em Bruxelas, país onde esta atividade é regulada. O português acredita que regras claras trarão transparência, reduzindo o risco de práticas ilegítimas. E defende que o país deve seguir o modelo aplicado pela União Europeia.
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Em Portugal, a atuação de grupos de interesse junto de decisores políticos continua a ser um processo complexo, pouco claro e que causa desconfiança entre a população. A regulamentação do lóbi pode ser a solução para garantir transparência e dificultar o tráfico de influências e casos de corrupção no país?

Henrique Burnay, senior partner da Eupportunity, acredita que regular o lóbi ajudará a reduzir o risco de más práticas, apesar de não fazer milagres. E defende o modelo usado na União Europeia. Por lá, existe um registo de transparência, no qual estão inscritas todas as entidades que querem chegar aos políticos, há reuniões assistidas por uma terceira pessoa e parte da agenda dos decisores é pública. No limite, até pode pedir-se informação concreta sobre o tema da conversa. 

 

Os grupos de interesse atuam, mas o lóbi em Portugal não está regulamentado. Devia ser regulado? 

A administração pública em Portugal já reúne com muitas entidades que representam interesses. Mas nada disto está organizado. Há algumas regras (muito poucas), mas está muito por clarificar. Há muita gente que querendo cumprir regras, nem sabe quais deve cumprir. Por outro lado, a falta delas também torna mais difícil o escrutínio.

Por isso, acredito que o lóbi deva ser regulamentado. No entanto, esta regulamentação não equivale a legalizar qualquer prática, inclusive o que seja tráfico de influências. Pelo contrário. Até ajuda a que melhor se determine o que é legítimo e o que deve ser ilegítimo.

Ainda assim, importa salientar que a existência de regras não é, por si só, uma garantia de que não possa haver práticas irregulares.

 

Uma eventual lei devia centrar-se nos decisores políticos? Na atuação dos grupos de interesse? Ou na interação que se estabelece entre os dois?

Tem-se falado da regulamentação dos grupos de interesse. Pessoalmente, defendo que deveria ser regulamentada a relação entre os decisores políticos e os representantes de interesses.

Mas, atenção, acredito que a regulamentação não deva abranger todas as dimensões do lóbi. Do lado dos representantes de interesse, não é essencial que se saiba como é que as empresas funcionam, que clientes têm e se são (ou não) compatíveis entre si. Da mesma forma que as regras sobre incompatibilidades dos decisores políticos quando terminam os seus mandatos não devem ser enquadradas nesta regulamentação.

 

Onde se estabelece a fronteira entre influenciar um determinado resultado político e o abuso de influências?

Diria que essa fronteira é estabelecida quando o fator que produz esse resultado político não é aquilo que a entidade tem a dizer, as suas preocupações ou prioridades, mas sim outros fatores, como a expectativa de benefícios para proveito próprio ou a existência de relações pessoais.

Nesse sentido, o importante é saber o que o motivou esse decisor político a agir de determinada forma: se foi a informação que recebeu sobre o tema ou se, ao contrário, foram razões externas às que seriam normais num processo de decisão.

É preciso um registo de transparência centralizado, um código de ética associado aos representantes de interesses, ter regras sobre quem quer estar inscrito. E do lado do decisor, haver uma parte da sua agenda que é pública quando existem essas reuniões.
Senior partner da Eupportunity

Como funciona a lei noutros países, nomeadamente em Bruxelas (onde trabalha) e que regras existem? 

Na União Europeia existe um registo de transparência onde estão inscritas empresas, consultoras, organizações não-governamentais ou advogados quando estão a atuar em representação de interesses. Dando o exemplo de uma consultora, nesse registo constam os clientes mais relevantes, quem são as pessoas que trabalham com a entidade, quais são os clientes que têm valor mais significativo na sua atividade, que áreas e temas é que segue e se participa nalgum grupo de especialistas ou nalgum projeto da União Europeia.

Quando são pedidas reuniões com decisores políticos, a partir de determinado cargo (por norma, do diretor da comissão para cima) estas ficam registadas numa agenda pública do decisor.

Assim, é possível ver todas as reuniões que determinado comissário, gabinete ou diretor teve com os representantes de interesses. No limite, pode pedir-se o assunto sobre o qual falaram, desde que quem o peça reúna as condições necessárias para o efeito.

Em regra, durante esses encontros, os decisores têm sempre outra pessoa na sala. Caso isso não aconteça, reúnem de porta aberta. Na troca de e-mails, também é frequente colocarem, em cópia, outras pessoas envolvidas.

 

O modelo aplicado a Bruxelas podia ser replicado em Portugal?

Sim, deveria ser a base para Portugal. Depois, mais adiante, poderia chegar-se à conclusão que teria de ser melhorada e alterada. Mas para começar, diria que sim.

É preciso um registo de transparência centralizado, um código de ética associado aos representantes de interesses e regras sobre quem deve estar inscrito. E, do lado dos decisores, deveria haver uma parte da agenda tornada pública quando existissem essas reuniões.

 

Neste processo, como é que se garante que os pequenos grupos de interesse não são totalmente excluídos pelos grandes?

Quanto mais este processo estiver regulamentado, transparente e escrutinado, mais facilmente podemos garantir maior representatividade no acesso aos decisores. Porque a ausência de regras faz com que, provavelmente, quem tem maior acesso é quem tem maior dimensão e expressão.

Quanto mais empresas, organizações, associações puderem fazer chegar as suas preocupações aos decisores, mais informada será a tomada de decisão.

No estudo da Fundação “Grupos de interesse no sistema político português”, 49% dos inquiridos diz não confiar nestes grupos. Na sua perspetiva, este cenário de confiança melhorou ou piorou?

Na linguagem corrente, a representação de interesses é, normalmente, apresentada como algo pouco transparente, aumentando a desconfiança. E as expressões "grupos de pressão", "grupos de interesse" ou "lóbi" têm uma carga pejorativa que não ajuda. Mas noto que tende a diminuir quando se explica do que se trata.

Acho que regulamentação ia ser benéfica para alterar esta perceção negativa, porque ia ajudar a tornar tudo mais claro.

 

Como devem os atores políticos agir perante o lóbi? Como evitar que sejam “capturados”? E que capacidades devem ter?

Os decisores políticos precisam de ser livres na decisão, afastados de possíveis conflitos de interesses. E têm de ter consciência de que podem ser responsabilizados por aquilo que decidem.

 

Já defendeu que é importante existirem mais vozes para garantir a transparência no processo de decisão. Que vozes serão essas? 

Quanto mais empresas, organizações, associações puderem fazer chegar as suas preocupações aos decisores, mais informada será a tomada de decisão.

 

Em Bruxelas, quais são, neste momento, os grandes grupos de interesse junto do Parlamento Europeu? E em Portugal?

Em Bruxelas, há milhares de entidades inscritas no registo de transparência. Atualmente, há muitos grupos de interesse envolvidos na transição energética (indústria, organizações não governamentais, empresas afetadas pelas regras que tem sido impostas). Também há muita representação na área do digital e em acordos de comércio. E, desde o início do mandato desta Comissão, é crescente existirem entidades que representam o setor da defesa - desde o armamento, a equipamentos e tecnologias com duplo uso.

Em Portugal, como não há um registo público, podemos apenas imaginar o que acontece. Mas diria que, além de representantes de setores empresariais, organizações, associações ou sindicatos, haverá investidores estrangeiros e empresas que estejam a renovar as suas áreas de negócio.

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