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Os cientistas descartáveis

Os cientistas descartáveis

Artigo exclusivo de David Marçal a propósito do lançamento do seu novo retrato: «Cientistas portugueses»
3 min
«Aintegração de doutorados nas empresas ainda está muito atrasada entre nós. Não há doutorados a mais em Portugal. Mas é necessário dignificar profissionalmente a investigação científica e promover a transição de doutorados para outros sectores de actividade.»

Foram precisos 35 anos para que metade dos investigadores que publicaram o seu primeiro artigo em 1960 abandonassem a carreira científica. Para que metade dos que publicaram o primeiro artigo em 2010 deixassem a carreira científica foram necessários apenas cinco anos. A esta ideia, do tempo que demora a desaparecer metade de uma coisa, chama-se o tempo de meia vida. O do famoso carbono 14 é de cerca de 5730 anos, os necessários para que metade de todo o carbono 14 de um antigo ser vivo desapareça. O decaimento dos isótopos radioactivos pode ser usados para datar vestígios biológicos, porque ele acontece de modo consistente ao longo do tempo. Não é o caso da duração das carreiras científicas.

A meia vida dos investigadores está cada vez mais curta. Não apenas em Portugal. Os dados acima referidos constam de um estudo acerca das carreiras científicas, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, em Dezembro último. Os autores analisaram os artigos científicos publicados desde 1961 nas mais relevantes revistas científicas de cada uma destas destas três disciplinas: ecologia, astronomia e robótica (neste último caso, só consideraram os artigos posteriores a 1985). Os dados são globais e espera-se que os três campos tão distintos (astronomia, ecologia e robótica) sejam um reflexo do panorama mais geral das carreiras científicas.

Nas últimas décadas houve um grande crescimento do número de doutorados, que não foi acompanhado por um crescimento comparável do número de posições de quadro para professores nas Universidades. No caso português, entre 2001 e 2015 concluíram um doutoramento 25.402 pessoas (dados da PORDATA). No mesmo período, o número de docentes no ensino superior teve um saldo negativo de cerca de 3.000 posições nos quadros dos politécnicos e das universidades. É fácil de perceber que a conclusão de um doutoramento deixou de estar naturalmente associada à docência no ensino superior.

A ideia de um professor universitário que regularmente se reproduz a cada geração de alunos de doutoramento deixou de fazer sentido. Mas esse ainda é o conceito implícito à generalidade das organizações científicas. Não apenas em Portugal. Mas o nosso país tem algumas particularidades. Uma delas é que por aqui houve um crescimento muito rápido e recente do sistema científico, que fez com que a mudança de paradigma acontecesse muito depressa.

Temos de olhar para as carreiras científicas de outra forma, assumindo que há um grande número de investigadores que não irá assumir no futuro as funções dos seus orientadores. É necessário que a investigação científica não seja um desastre do ponto de vista profissional para quem a faz de modo transitório. Pelo contrário, é preciso que essa experiência possa ser recompensadora e valorizada nas fases subsequentes da vida profissional. Para isso é fundamental que os anos de investigação sejam cumpridos em condições laborais dignas (e não com o recurso abusivo a bolsas de investigação científica, que deixam os bolseiros sem direito a um regime decente de segurança social). E que haja oportunidades efectivas de transição de doutorados para outros sectores. A ciência é hoje transversal e as pessoas que compreendem profundamente o processo científico poderão dar um contributo muito válido noutros contextos. A administração pública poderia dar o mote (por exemplo, nas entidades reguladoras ou outras que lidem com componentes técnico-científicas relevantes). Nas empresas a investigação e a criatividade também podem ser decisivas. Mas a integração de doutorados nas empresas ainda está muito atrasada entre nós. Não há doutorados a mais em Portugal. Mas é necessário dignificar profissionalmente a investigação científica e promover a transição de doutorados para outros sectores de actividade.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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