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Opinião GPS #7 - Contribuir para um mundo melhor implica darmos atenção aos nossos deveres éticos

Opinião GPS #7 - Contribuir para um mundo melhor implica darmos atenção aos nossos deveres éticos

Artigo de Guilherme Vasconcelos Vilaça, especialista de Direito e relações internacionais e professor no Departamento de Direito do Instituto Tecnológico Autónomo de México.
6 min

A ética nas relações internacionais é tão necessária como inegável.

É inegável porque apesar de frequentemente se dizer que só o poder impera na sociedade internacional, o facto é que fazemos juízos normativos diariamente. Quer criticando ou aplaudindo líderes mundiais (ex.: Guterres ou Lagarde), quer questionando a bondade de práticas ou ações de organizações e estados (ex.: o que pensar sobre a disputa no Mar do Sul da China ou sobre o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas?).

É necessário porque o Direito não chega para evitar, prevenir ou premiar comportamentos humanos. Quer porque o Direito positivo não sanciona todas as condutas, porque não o pode fazer ou ainda porque tal não seria desejável. Por exemplo, será que o líder da Organização Mundial da Saúde pode e deve poder decretar uma epidemia sem ouvir os Estados Membros afetados? E o que dizer de uma missão de capacetes azuis que se recusa a recorrer ao uso da força para salvar pessoas em perigo porque isso vai contra o seu mandato? É neste espaço que entra a ética como discurso não-institucionalizado que nos permite avaliar como boas ou más certas práticas. Deste modo, nos dois casos (reais) referidos acima, para muitos pensadores um juízo ético exigiria ir além ou contra as normas jurídicas. Mas que tipo de ética para as relações internacionais devemos adotar?

Na minha investigação tenho articulado uma conceção ética pragmática ou não-ideal que descobre e pensa como nos devemos comportar (todos, e não só Estados) a partir de situações concretas e não de princípios e valores definidos a priori. Que quer isto dizer?

Estamos dispostos a reduzir os nossos hábitos de consumo - viagens para fins pessoais e profissionais; a água que gastamos em cada duche; a dieta, os alimentos e produtos mais variados à nossa disposição assim como o nosso nível de consumo e necessidades materiais?

Primeiro, que discussões abstratas sobre se devemos ou não abrir as fronteiras nacionais a refugiados e imigrantes ou lutar contra as alterações climáticas não nos levam longe. (E)feitos como o de Greta Thunberg têm impacto sobre a esfera mediática, mas não mudam fundamentalmente a natureza do problema, que é uma natureza política. Porque ainda que estivéssemos todos de acordo de que existe um imperativo ético de salvar o planeta e os seus habitantes, que problemas se resolveriam com tal acordo?

Por isso as verdadeiras perguntas, no meu entender, são: Estamos dispostos a reduzir os nossos hábitos de consumo - viagens para fins pessoais e profissionais; a água que gastamos em cada duche; a dieta, os alimentos e produtos mais variados à nossa disposição assim como o nosso nível de consumo e necessidades materiais? É fácil pensar que descobertas tecnológicas podem ajudar a esta redução, mas basta considerar a energia necessária para suportar as pesquisas na internet ou os recursos gastos para desenvolver (e manter) motores mais amigos do ambiente para perceber que o problema é a nossa voracidade consumidora porque qualquer inovação tecnológica gerará novos problemas e consumo. Exigindo logicamente novas inovações para resolver os últimos, e assim por diante.

No caso dos refugiados, os problemas são: Como definir e distribuir refugiados pelos países de acolhimento? Com base em que critérios, capacidades e disponibilidade de recursos? Quantos de nós estarão disponíveis para acolhê-los em casa, integrá-los socialmente, dar-lhes formação de diferentes tipos ou vesti-los?

Segundo, partir de situações concretas e não de valores abstratos para se fazer ética compromete eticamente, muito mais do que normalmente se defende, os indivíduos e comunidades que se tornam verdadeiros agentes de mudança. Não podemos esquecer que o Estado é uma abstração, uma representação de características especiais de grupos de indivíduos, e que os deveres que lhe impomos terão que ser levados a cabo e financiados pelos cidadãos que o constituem. Desta forma, e aceitando uma ética das situações, penso que é importante responsabilizarmo-nos pelas mudanças que exigimos ao nosso Estado, ou seja, a todos os nossos cidadãos. Por isso, é importante pensar-nos como “cidadãos”, “consumidores”, “contribuintes”, “privilegiados” e “famílias adotivas” para enunciar algumas categorias e pensar nos deveres éticos concretos a que estamos adstritos se desejamos contribuir para um mundo melhor. Mas deixar de lado o Estado e pensar os problemas éticos a uma escala mais local permite abrir espaço para novos atores como as “cidades”, que têm ganho prominência sobretudo no que toca à luta contra as alterações climáticas. Esta abertura é relevante também por outra razão:

O Acordo de Paris sobre alterações climáticas tem sido alvo contínuo de escárnio e recentemente foi abandonado pelos Estados Unidos da América. Para idealistas e juristas, este é praticamente um não-tratado porque permite aos Estados definirem livremente a sua meta na redução de emissões, comprometendo-se os Estados a rever o seu acordo periodicamente sem, contudo, baixar tais metas. Ao mesmo tempo, o Acordo de Paris é um compromisso que “casa” bem com uma ética pragmática. Perante a impossibilidade de definir regras precisas, as dificuldades com o anterior Protocolo de Quioto e questões éticas complexas derivadas da contribuição passada dos países desenvolvidos, este acordo define um horizonte ético claro a ser definido de acordo com as possibilidades e ideais de cada Estado. Possibilita também que entidades que não os Estados observem e participem nas suas conferências, alargando muito o conceito de quem é responsável e interessado eticamente.

Reclamo um papel muito mais importante para os cidadãos enquanto agentes da ética internacional como parte de uma visão ‘bottom-up’ contextualizada e não ‘top-down’ abstrata e ideal.

Efetivamente, inúmeras cidades comprometeram-se a implementar e promover o Acordo de Paris e nalguns casos contra a atitude do Estado em que se encontram (ex.: Estados Unidos da América). Em síntese, quebrar a necessidade de se abordar a ética internacional a partir de valores a priori, dos Estados e de um Direito internacional formal proclamado entre eles abre portas a uma visão ética mais participativa que envolve mais atores e leva em consideração as particularidades dos diferentes contextos e situações em que os últimos operam.

Terceiro, se reclamo um papel muito mais importante para os cidadãos enquanto agentes da ética internacional como parte de uma visão bottom-up contextualizada e não top-down abstrata e ideal, parece-me importante recuperar um vocabulário ético esquecido através dos tempos. Na Universidade de Helsínquia, sob a direção do Professor Jan Klabbers e de colegas como Maria Varaki, trabalhámos na aplicação da ética das virtudes de matriz aristotélica à esfera internacional. Porquê referir isto? Porque o discurso sobre as virtudes é um discurso sobre o desenvolvimento do caráter dos indivíduos e não tanto sobre ações isoladas (e as suas consequências) ou valores abstratos. Ser moralmente bom é procurar a excelência e florescimento humanos tendo em conta o contexto e a situação concreta.

É, portanto, uma ética de responsabilização individual que nos concita à pergunta sobre o que deveríamos fazer concretamente para criar um projeto político-social que nos permita florescer coletivamente, mesmo contra o nosso bem-estar individual e para além das nossas responsabilidades como definidas pelo Direito. Possibilita também escapar ao atual discurso sobre direitos humanos que é excessivamente abstrato e, pelo menos no Ocidente, ignora totalmente o conceito de deveres associados (e necessários) aos direitos. Para criarmos um mundo melhor deveríamos educar o nosso caráter aceitando a responsabilidade individual de tomar conta do nosso mundo.

Para ler mais sobre o tema a partir de perspetivas diferentes:
Peter Singer, Um Só Mundo: A Ética da Globalização (Gradiva)
Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos (Edições 70)
Onora O’Neill, Em Direção à Justiça e Virtude (Martins Fontes)
Charles Beitz, Global Basic Rights (Oxford University Press)

Consulte o perfil de Guilherme Vasconcelos Vilaça no portal GPS-Global Portuguese Scientits, uma parceria entre a Fundação, a Ciência Viva, a Universidade de Aveiro e a Altice Labs.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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