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Capa artigoIsabel II Ademar Vala Marques

O legado de Isabel II

Como pode a monarquia, assentando num elemento flagrantemente não democrático como é a hereditariedade, despertar o fascínio que a morte de Isabel II, aos 96 anos e 70 de reinado, evidenciou entre nós? Como sobrevivem monarquias em países europeus que são democracias esclarecidas, com níveis de literacia política muito superiores à que temos em Portugal?
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Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, apenas um país europeu abandonou a forma monárquica de Estado. No rescaldo das tensões políticas que acompanharam o país ao longo do século XX, a Grécia decidiu em referendo escolher a república, em 1974. O rei Constantino II, exilado em Londres, não foi autorizado a regressar para fazer campanha. Segundo o rei, o receio de que a sua presença galvanizasse os monárquicos foi determinante na decisão.

Há, de facto, algo de imaterial muito forte nas monarquias, que vai ao âmago do orgulho pátrio. É, desde logo, a ligação imediata à História do país, às glórias, aos sucessos e também às tragédias, um caminho feito em comum com uma figura que, em determinado período, ocupa o trono. Ajuda, claro, o facto de, nas sociedades democráticas em que o rei não governa, o monarca representar o Estado sem para isso ter de ser partidário, de esquerda ou direita, liberal ou conservador, socialista e/ou populista. 

Nas sociedades democráticas em que o rei não governa, o monarca representa o Estado sem para isso ter de ser partidário, de esquerda ou direita, liberal ou conservador, socialista e/ou populista

Uma outra dimensão imaterial não pode deixar de ser valorizada. No conjunto de cerimónias e tradições que são parte essencial das monarquias e a que vamos assistir nos próximos dias no país que melhor as conserva, há uma certa ficção de um mundo que já não existe.

Um mundo com cores heráldicas, fanfarras, jóias, marchas militares, protocolo e precedência, que encerra uma beleza de outro tempo. Um tempo em que nem tudo era perfeito, mas em que havia mais valores e mais princípios. 

É, de certa forma, um espectáculo de Estado. Tal como, em cada ano, a abertura do Parlamento, assim agora o funeral de Isabel II e depois a coroação de Carlos III. Uns dirão, claro, que será um desperdício de dinheiro, que melhor estaria noutras despesas. Mas para a maioria virá à flor da pele o orgulho pela História britânica, a gratidão pelo serviço e pela entrega da rainha e da sua família, e um sentimento pátrio que nas repúblicas, por estes dias, se vislumbra apenas nas vitórias no futebol. 

A essa ficção cerimonial corresponde uma realidade tangível – da família real espera-se, mesmo neste mundo cheio de hipocrisia, que encarne valores e princípios de outras eras.

Nesse aspecto, Isabel II foi exemplo para todos os líderes. A sua dedicação de corpo e alma, ao longo de toda a sua vida, no seguimento da declaração que fez em 1947, é absolutamente ímpar e estabelece um patamar de serviço e abnegação particularmente difícil de atingir, uma bitola elevadíssima. 

Isabel II foi exemplo para todos os líderes. Nas palavras certeiras de Boris Johnson, de certa forma, criou a moderna monarquia constitucional.

Nas palavras certeiras de Boris Johnson [ex-primeiro-ministro britânico], no elogio fúnebre que lhe fez na Câmara dos Comuns em que procurou cunhar o cognome de Isabel, a Grandea rainha de certa forma criou a moderna monarquia constitucional.

A Constituição não mudou, mas a prática, pelo exemplo, transformou-a numa instituição de serviço, integrada num mundo contemporâneo tão diferente daquele em que Isabel de Inglaterra subiu ao trono em 1952.

O exemplo de Isabel II, na forma serena, constante, absolutamente decente e leal como serviu o povo britânico e exerceu as funções que, por força da hereditariedade e dos acasos do destino, lhe coube desempenhar por 70 anos, é o seu grande legado. É um padrão comportamental que deveria servir para todos os reinos e para todas as repúblicas.

 

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