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O estranho caso da senhora que queria passar o Natal com o seu elefante

O estranho caso da senhora que queria passar o Natal com o seu elefante

Excerto do livro «Cobras, lagartos e baratas», de Ana Daniela Soares.
4 min

No nosso país, os números são mais modestos, mas, em junho de 2018, a Interpol levou a cabo uma grande operação internacional de combate ao tráfico ilegal de vida selvagem. Com o nome de código Trovoada, entre 1 e 31 de maio desse ano foram feitas 1974 apreensões e identificados 1400 suspeitos em 92 países, tendo resultado em milhões de dólares de apreensões. Da lista, fazem parte:

> 43 toneladas de carne de urso, elefante, crocodilo, baleia e zebra;
> 1,3 toneladas de marfim;
> 8 toneladas de escamas de pangolim;
> carcaças de 7 ursos, 2 de ursos‑polares;
> 27 000 répteis, entre os quais cobras, jacarés, crocodilos e tartarugas;
> 4000 aves, entre as quais pelicanos, avestruzes, papagaios e corujas;
> 48 primatas;
> 14 grandes felinos, como tigres, leões, leopardos e jaguares.

O tráfico de vida selvagem é um dos mais lucrativos, depois do tráfico de drogas e de pessoas.

Calcula-se que o tráfico de vida selvagem movimente cerca de 12 mil milhões de euros por ano e esteja normalmente ligado a outro tipo de tráfico, como explica João Loureiro.

«Por exemplo, o Boko Haram, em África, sobrevive e é financiado pelo dinheiro do tráfico. Dos seis ou sete grandes processos de investigação criminal que fizemos com o tráfico de espécies em Portugal, três estavam ligados a droga porque acaba por ser um branqueamento do dinheiro obtido com a droga, depois da disponibilização do animal. Um animal pode ser legal e ser comercializado, mas não deixou de ser comprado com dinheiro ilícito.»

À data da escrita deste retrato, ainda não estavam disponíveis os dados das apreensões efetuadas pelo ICNF em 2018, mas, em 2017, as mais importantes foram de cornos de rinoceronte e de um chimpanzé, entretanto enviado para um centro de recuperação especializado em primatas, na Holanda.

Comprar um animal, seja ele qual for, numa loja, na Internet, diretamente ao criador ou noutro país, é uma grande responsabilidade: no que diz respeito ao conhecimento do animal, do que necessita para o seu bem-estar sem pôr em risco a saúde pública e os nossos ecossistemas, mas uma responsabilidade também legal. No caso de espécies exóticas, é preciso ter a certeza de que é legal detê-la em Portugal e possuir toda a documentação obrigatória por lei.

A Florida debate-se atualmente com um problema ambiental grave motivado pela libertação no ambiente selvagem de uma cobra, a pitão-da-birmânia. Como o nome indica, esta serpente originária do Sudeste Asiático chegou aos Estados Unidos como animal de estimação. Terá sido na década de 1980 que algumas cobras terão sido libertadas, problema que se acentuou com a passagem do furacão Andrew pela região, que destruiu algumas infraestruturas onde as cobras se encontravam em cativeiro. A sua libertação levou a que este pitão, que pode atingir os 6 m de comprimento e pesar mais de 60 kg, se instalasse no Parque Nacional Everglades, dizimando as espécies autóctones — aves, pequenos mamíferos, linces e até crocodilos —, desequilibrando ecossistemas que não sabemos se vão conseguir recuperar. São consequências do comércio de animais exóticos que devem ser cuidadosamente ponderadas. E por vezes andam por aí elefantes…

«A história é caricata, já tem uns anos», conta João Loureiro. «Recebemos sempre muitas denúncias no ICNF sobre detenção de animais estranhos ou que andam à solta, a maior parte não são verdadeiras. Por descargo de consciência, verificamo-las sempre. Há uns anos, segundo uma denúncia, andava uma senhora a passear um elefante no Algarve. Os colegas do Algarve confirmaram: andava uma senhora a passear um elefante, seu animal de companhia. Um elefante-africano com 4 m de altura, 4000 kg de peso, que, em Portugal, não é considerado animal de companhia.

Tinha origem alegadamente legal, embora considerássemos que a documentação tinha sido emitida incorretamente, não por nós mas por outro país. Não tínhamos onde pôr o elefante; portanto, apreendemo-lo. A ideia era obrigar a senhora a levar o elefante para onde fosse aceite, nomeadamente o país de origem, e assim foi feito. Pusemos o elefante num local e, passados uns meses, a pessoa responsável pelo local telefonou-nos: o elefante desaparecera. Um elefante não desaparece, não voa, não pode desaparecer. Foi um processo judicial que, para nós, teve alguns problemas nas decisões, e o elefante acabou por partir sem nosso conhecimento, sem nossa autorização. Os meus congéneres do país de origem da senhora telefonaram-me no Natal dizendo que a senhora fora buscar o elefante porque queria passar a quadra em casa com o animal de companhia. Esqueceu-se que, para todos os efeitos, o elefante foi roubado porque pertencia ao Estado. Um elefante como animal de companhia é exagerar um pouco a definição de animal de companhia.» E,  afirmamos nós, ser biólogo do ICNF e trabalhar nesta área não é definitivamente uma profissão monótona.

Excerto do livro Cobras, Lagartos e Baratas: os Melhores Amigos do Homem?, da autoria de Ana Daniela Soares.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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