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«O estilo de vida pode aumentar o risco de desenvolver demência»

Entrevista com Armanda Santos, professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular
7 min

Reveja o Fronteiras XXI “Demências: Conseguimos preveni-las?”

 

Mais de 40% dos casos de demência podiam ser evitados ou retardados com alterações no estilo de vida, segundo um relatório da revista científica «The Lancet» publicado em 2020.  E a professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra Armanda Santos concorda: «Os estudos mostram que, entre outros factores, a hipertensão, o colesterol e os níveis altos de glicose, são factores que aumentam o risco de desenvolver demência». A investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular, que tem tentado desenvolver um tratamento para travar a progressão da doença de Alzheimer, diz que «nunca é tarde para se adoptar um estilo de vida saudável».

 

Quantos tipos de demência existem?

As formas mais comuns de demência são a doença de Alzheimer – que contribui para 60 a 70% de todos os casos –, depois a demência vascular, a demência frontotemporal, a demência com corpos de Lewy. Podem ser causadas por diferentes factores e estar associadas a outras doenças.

 

Quais são os factores que mais contribuem para o desenvolvimento de demências?

Os estudos que têm sido feitos nos últimos anos mostram que a hipertensão, o colesterol e os níveis altos de glicose, são factores que aumentam o risco de se vir a desenvolver demência. É muito importante que o público esteja consciente que o estilo de vida influencia aquilo que ocorre no cérebro e as doenças que podemos vir a desenvolver numa fase posterior da vida. Nunca é tarde para se adoptar um estilo de vida saudável: praticar exercício físico, evitar hábitos tabágicos, evitar consumo excessivo de álcool, ter uma dieta equilibrada, um sono saudável, e manter uma estimulação cognitiva durante toda a vida – por exemplo, as pessoas reformadas ou desocupadas devem inscrever-se em cursos formais de forma a estimular o cérebro e reforçar as actividades cognitivas. É o que temos até ao momento: formas de prevenir algumas demências através de mudanças no estilo de vida.

 

Não existem tratamentos eficazes para nenhum dos diferentes tipos de demência?

Até ao momento, não existe nada que possamos fazer do ponto de vista farmacológico. Não existem ainda tratamentos que permitam curar ou que consigam modificar o curso destas doenças, por exemplo, atrasando o desenvolvimento da sintomatologia. Recentemente, em 2020, a empresa farmacêutica Biogene pediu autorização para introduzir no mercado um tratamento de imunoterapia que actuaria na proteína bet-amilóide – que está muito associada à doença de Alzheimer. O dossier está a ser estudado, mas ainda não foi aprovado nem pela Food and Drug Administration (FDA) nem pela Agência Europeia do Medicamento.

 

A doença de Alzheimer foi identificada há mais de 100 anos. Porque é que não houve progressos no desenvolvimento de tratamentos para esta e outras formas de demência?

Essa é uma questão muito relevante. Apesar de a doença ser estudada há vários anos, efectivamente, ainda não sabemos tudo sobre ela. Mas não é por falta de esforço. É preciso tempo. A doença de Alzheimer é muito complexa. Hoje sabemos que vários factores contribuem para a morte de neurónios e para o desenvolvimento de demência, e sabemos que há zonas do cérebro que são mais vulneráveis a estímulos tóxicos. Outro motivo que pode explicar a dificuldade em encontrar um tratamento eficaz para a doença de Alzheimer está relacionado com a fase da doença dos indivíduos recrutados para os ensaios clínicos. Até muito recentemente, a grande maioria dos ensaios clínicos era efectuada com indivíduos que apresentavam sintomatologia – uma fase tardia, porque, normalmente, os danos no cérebro já são muito grandes. Isto só foi compreendido recentemente, através de estudos com técnicas de neuroimagiologia feitos com populações que têm a forma familiar da doença de Alzheimer (que pode aparecer antes dos 65 anos). Estes estudos permitiram perceber que os sintomas só começam a aparecer cerca de 22 anos depois de se iniciarem alterações no cérebro dos doentes, nomeadamente a deposição da proteína beta-amilóide. Por isso, actualmente considera-se que os ensaios clínicos com fármacos que têm como alvo a produção de proteína beta-amilóide devem ser desenvolvidos numa população de indivíduos pré-sintomática. Numa fase avançada é muito difícil reverter a evolução da doença e observar benefícios a nível cognitivo.

 

Quer dizer que, além de tratamentos eficazes, são precisos métodos de diagnóstico precoce?

Exactamente. É muito importante encontrar um tratamento, mas também é muito importante encontrarmos formas de fazer um diagnóstico precoce. Porque isso permitiria actuar numa fase inicial em que ainda não há grandes danos no cérebro. Mas os métodos de diagnóstico precoce têm de ser passíveis de aplicar à população em grande escala. Actualmente, o diagnóstico é efectuado com base na avaliação neurológica do indivíduo que pode ser complementada através de estudos de biomarcadores no líquido cefalorraquidiano – que exige uma punção lombar, um método muito invasivo; ou através de técnicas de imagiologia, como a tomografia por emissão de positrões (PET) – que é caríssimo. Sobretudo os dois últimos métodos de diagnóstico não são feitos de forma abrangente. Um dos desafios agora é tentar desenvolver um método de diagnóstico através de amostras de sangue, mais acessíveis e que permitam um exame menos invasivo e menos dispendioso.

 

Acredita que é possível encontrar uma cura para a doença de Alzheimer, ou estamos longe disso acontecer?

Acredito, acredito que é possível. Quão longe estamos de isso ser uma realidade, não sei. Os estudos clínicos são muito dispendiosos e a indústria farmacêutica tem tido sucessivos fracassos. A tendência é parar com os ensaios clínicos e apostar noutras doenças. Por vezes, não se percebe porque é que os ensaios clínicos foram mal-sucedidos. Nalguns casos teve a ver com a selecção dos sujeitos recrutados para os estudos, que depois se veio a descobrir que não apresentavam alterações no alvo terapêutico pretendido. Mas hoje, graças à tecnologia de imagiologia PET e ao estudo dos biomarcadores no líquido cefalorraquidiano, podemos seleccionar melhor a população de indivíduos a integrar um estudo clínico. O que permite interpretar de forma mais segura os resultados dos ensaios clínicos.

 

Os estudos para potenciais tratamentos são focados na proteína beta-amilóide?

Uma grande parte sim. Houve um grande investimento no desenvolvimento de inibidores das enzimas que participam na formação de proteína beta-amilóide e também em imunoterapias com anticorpos para a proteína beta-amilóide. Outros fármacos já desenvolvidos têm como mecanismo de acção impedir a agregação da proteína beta-amilóide. Actualmente estão também em desenvolvimento estratégias terapêuticas que têm como objectivo eliminar ou evitar a formação de agregados de proteína tau, mas estão numa fase bastante incipiente. Há ainda estudos com fármacos que têm como alvo a neuroinflamação, entre outros. Mas até ao momento nenhum fármaco conseguiu passar a fase três dos ensaios clínicos.

 

A professora liderou uma investigação com o objectivo de travar a doença de Alzheimer.

Sim, publicámos os resultados em 2020. Desenvolvi moléculas que inibem a enzima que é crucial para o desenvolvimento de peptídeo beta-amilóide e que podem ajudar a travar a progressão da doença. Demonstrámos que estas moléculas conseguem inibir de forma selectiva a clivagem da proteína precursora amilóide sem interferir com a actuação da enzima noutras proteínas da célula – que são importantes para o funcionamento das sinapses, das funções cognitivas e do cérebro no seu todo. Espero que estas moléculas venham a ser úteis no desenvolvimento de um tratamento uma vez que é expectável que, pelo facto de serem selectivas, as moléculas que desenvolvemos tenham menos efeitos adversos do que os inibidores desenvolvidos até ao momento.

 

Está em contacto com alguma empresa farmacêutica para desenvolver um medicamento?

Contactei a indústria farmacêutica, sim. Houve uma tentativa de colaboração, mas depois não avançou porque a empresa farmacêutica estava a desenvolver as suas próprias moléculas. Não é fácil para os investigadores chegarem à indústria farmacêutica e falarem do seu trabalho. Nas universidades temos gabinetes de transferência de tecnologia que nos dão algum apoio nesse aspecto. Mas não é fácil. Depois, há a questão de a indústria farmacêutica estar renitente devido aos sucessivos insucessos.

 

Para o desenvolvimento de tratamentos eficazes são necessários mais investimentos?

Sim, é preciso mais investimento na investigação das demências e que as empresas farmacêuticas não desistam de tentar desenvolver tratamentos. Nós aprendemos com os falhanços. Não é conhecimento deitado fora. Quem faz investigação na área do tratamento de demências acredita que, nos próximos dez anos, o que se irá fazer é uma terapia combinada usando diferentes fármacos para actuar sobre alvos moleculares de mecanismos patogénicos distintos o que poderá proporcionar um maior efeito benéfico. Actualmente há também investigação que tem como objectivo desenvolver um fármaco que actue em mais do que um alvo terapêutico de forma a aumentar possíveis efeitos benéficos. No entanto, ensaios clínicos com terapias combinadas ainda estão em fases muito incipientes e são mais complexos. Mas os investigadores acreditam que este é o caminho.

 

Reveja o Fronteiras XXI “Demências: Conseguimos preveni-las?”

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal