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O dia em que fui pedir orçamentos a agências funerárias

O dia em que fui pedir orçamentos a agências funerárias

Partilhamos um excerto do livro «Viver da Morte: a Indústria Funerária em Portugal».
7 min
«Apalavra "indigente", atirada com displicência, ficou a ecoar-me nos ouvidos. Uma família que opte por um enterro sem velório, porque o falecido não queria ou por quaisquer outros motivos válidos, é vista assim?»

Numa manhã soalheira, decidi visitar algumas agências funerárias de Lisboa, sondar-lhes as práticas e os preços. Como fazê-lo sem me rir com o nervosismo e sem parecer suspeita? Dizendo a verdade. Há 25 anos que, apesar da sua saúde de ferro, o meu pai me garante que já não dura muito. Os seus lamentos foram o pretexto perfeito. Finalmente serviram para alguma coisa. 

A primeira empresa que visitei foi a Funerária Família Monteiro, na Penha de França, em Lisboa, escolhida apenas porque já morei perto dela. (Um dia, fechados para obras, tinham um letreiro na porta que dizia «Para qualquer assunto, tratar na loja em frente». A loja em frente é um talho.) Nesta funerária, tal como o nome sugere, o ambiente é familiar. Dois funcionários, cada um à sua secretária, e um idoso a assinar papelada, ao fundo. Quem me recebe é um cavalheiro de blusão azul com logótipo bordado, que baixa o volume da música para me poder atender. O seu olhar é muito franco e pergunta-me ao que venho. Atrapalho-me um pouco, mas não o escondo, pelo contrário. Não quero que pense que venho às compras com prazer, quiçá já de olho na fortuna do patriarca. Explico-lhe que o meu pai está preocupado com os custos e procedimentos relativos ao seu funeral. Para me ajudar, pergunta-me se ele já pensou se quer ser cremado, ao que respondo afirmativamente. A seguir, pergunta-me se é eleitor em Lisboa, interrogação um tanto estapafúrdia. O meu pai não vota há umas boas quatro décadas, e morto votará ainda menos. O funcionário justifica-se dizendo que as taxas de cremação são diferentes para munícipes e não-munícipes, uma vez que se usa equipamento camarário para o efeito. Logo a seguir, pede-me o nome completo do meu pai e a sua data de nascimento, «para ver no software». Indico-lhos, curiosa com o resultado, e o software confirma que é residente em Lisboa. O funcionário tranquiliza-me quanto à privacidade dos dados e diz que me imprimirá a folha com os mesmos, o que agradeço. A seguir, quer saber se o meu pai pretende um serviço religioso e a resposta é enfaticamente negativa. (Uma das directrizes que costuma acompanhar a declaração de finitude a curto prazo é: «Não quero cá padralhada.») Nesse caso, diz-me o funcionário de olhar muito franco, é cremado directamente. Respondo que gostaríamos de ter um pequeno velório, um momento de despedida. Nesse caso, diz-me o funcionário com o mesmo olhar muito franco, pode ser velado no hospital (em que consistirá isto?) ou no próprio átrio do crematório, onde a urna poderá ficar umas horas antes da cremação, dependendo da disponibilidade. Dependendo também da disponibilidade, a urna irá para o crematório do Alto de São João ou dos Olivais. A não ser que a família faça questão de que seja num deles, caso em que terá de esperar pela vez. No fim, podemos trazer as cinzas para casa, «para fazerem o que quiserem». Pensei em Keith Richards, que inalou as cinzas do pai, e o meu interlocutor deve tê-lo pressentido porque se apressou a esclarecer: «Para lançarem ao mar ou guardarem. Ou então deixam-nas no cendrário, juntamente com as cinzas de outras pessoas.» Todo o processo, já com as taxas, sairia a 1400 ou 1500 euros. Um pouco mais caro por ser cremação. «Ah, sim? Enterrar seria menos dispendioso?» «Sim, a taxa de cremação é 148,60 euros e a de sepultação é de 85 euros, sujeita às revisões anuais de preço. Mas depois, em caso de sepultura, há custos com a ornamentação, a manutenção ao longo dos anos e a exumação.»

Tendo-me dito tudo o que poderia dizer por agora, o funcionário foi buscar o documento relativo à ficha de eleitor (que mais não era do que uma consulta dos cadernos de recenseamento, disponível a qualquer pessoa com acesso à internet) e despediu-se de mim com um aperto de mão amável. Saí com a sensação de estas consultas não serem habituais. Mas saí também persuadida de que esta seria uma boa funerária à qual recorrer: os preços batiam certo com o que esperava e a sinceridade da expressão pareceu-me importante. Fiquei apenas um pouco apreensiva com aquela questão de se velar o falecido no hospital. Seria na morgue? No quarto? E se o meu pai não morrer no hospital? Ou então de se velar no crematório, dependendo da disponibilidade. E se houvesse uma longa fila de espera? Haveria privacidade? Isto poderia dar azo a situações confusas e embaraçosas.

A pensar nestas coisas, dirigi-me a Alvalade, onde existe uma filial da Servilusa que anteriormente pertencia à famosa Agência Magno. Para minha sorte, havia uma outra funerária na porta imediatamente ao lado. Decidi entrar primeiro nessa, pertencente ao Grupo A.F.A., que detém nove balcões. A funcionária estava ao telefone, o que me deu tempo para apreciar as figurinhas e os acessórios expostos nas prateleiras. Quando desligou, não me convidou a sentar, tendo a conversa decorrido comigo sempre de pé. Falei-lhe das mesmas intenções, cremação e cerimónia não-religiosa, e a resposta com poucos rodeios foi: «À volta de 800 euros, a que se soma a taxa de cremação. Se quiser enterrar as cinzas no cendrário são mais 52 euros. É um “jardim da saudade” em que eles escavam um buraquinho, põem as cinzas da pessoa juntamente com as de mais três ou quatro e depois tapam. Se quiser velório em capela de igreja são mais 85 euros, mas se quiser velório na capela do cemitério são mais 89 euros, segundo a tabela actual. Se quiser um pote para as cinzas, também lho vendemos. Oitocentos euros é o preço de um funeral simples, o funeral médio que costumamos fazer.» Pedi um cartão-de-visita, agradeci e vim-me embora. O cartão promete «um serviço funerário diferente e único». Perguntei-me em que medida. Talvez no preço, bastante mais baixo? A qualidade do serviço seria sacrificada? Haveria custos posteriores escondidos? Fui espreitar o site e também não dizem o que torna o seu serviço único e diferente. Mas mostram viaturas funerárias em frente ao Mosteiro dos Jerónimos e ao Padrão dos Descobrimentos. Ambição não lhes falta.

A seguir, entrei nas instalações da Servilusa, com um aspecto mais moderno do que as duas agências anteriores. Quando disse ao que vinha, a funcionária sugeriu-me o «Plano Funeral em Vida», em que a pessoa escolhe o que quer no seu próprio funeral, nomeia um responsável para quando o momento chegar e paga as despesas adiantadamente. Se eu quisesse, um representante poderia deslocar-se a minha casa para explicar os procedimentos. A empresa trata de tudo, a pessoa só tem de morrer. Respondi que queria apenas ficar com uma noção dos valores, e então foi necessário ligar ao coordenador. A chamada foi estabelecida e o telefone foi-me passado. Do outro lado ouviu-se a voz jovem e desembaraçada de um comercial treinado. Informou-me que o que eu pretendia era um funeral directo, em que o corpo é levado do local do óbito para a cremação. «Nesse caso, custaria cerca de 1650 a 1700 euros. No entanto, este é um funeral que não se costuma fazer, é quase de indigente. Se a família quiser uma coisa com outro percurso, em que se possa fazer uma homenagem, estamos a falar de valores a partir de 2250 euros. Mas aí não há valores fechados, podemos ir aos 3000, 4000, 5000, dependendo [do que se quiser incluir]». Ou seja, bastante mais do dobro do que me haviam indicado na Penha de França. De onde viriam estes custos todos? Horas gastas pelo pessoal da agência no acompanhamento do velório? Quilómetros percorridos pelo carro funerário? Água e café disponibilizados no local? As disparidades de preço não são propriamente uma novidade. Em 2002, a DECO contactou 97 agências por todo o país e constatou que um mesmo funeral podia variar entre os 498 euros e os 1955 euros, ou seja, quatro vezes mais. No entanto, surpreendeu-me a alusão a «5000», quando tudo o que pedira fora uma cerimónia simples.

A palavra «indigente», atirada com displicência, ficou a ecoar-me nos ouvidos. Uma família que opte por um enterro sem velório, porque o falecido não queria ou por quaisquer outros motivos válidos, é vista assim? Perguntei-me onde estaria a sensibilidade e a formação que a «empresa líder» apregoa. A Servilusa quer posicionar-se no mercado como a agência de prestígio para as classes altas, mas desdenhar de um funeral de 1700 euros pareceu-me, além de desumano, pouco avisado do ponto de vista comercial. Ainda quanto aos «indigentes», um dado curioso: a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) acompanha anualmente cerca de 380 funerais de pessoas que morrem sozinhas e cujos corpos ninguém reclama, o que representa um custo de 332 euros por funeral. (A SCML anuncia-o como uma benemerência sua; no entanto, a Segurança Social reembolsa a instituição na íntegra – são os contribuintes que pagam esse serviço.) Regularmente, a SCML abre concursos públicos para o fornecimento deste serviço. Quem os tem vencido sucessivamente? A Servilusa.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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