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As «novas Rotas da Seda» chinesas invertem as rotas de Marco Polo e de Vasco da Gama

As «novas Rotas da Seda» chinesas invertem as rotas de Marco Polo e de Vasco da Gama

Excerto do novo livro do especialista de relações internacionais Carlos Gaspar, «O Mundo de Amanhã: Geopolítica contemporânea».
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Em 2012, a nomeação de Xi Jinping como secretário‑geral e presidente da Comissão Militar Central no XVIII Congresso do Partido Comunista da China marca uma viragem decisiva na evolução do regime comunista. A nova narrativa oficial resume essa mudança com a definição de três ciclos sucessivos — a unificação do Estado com Mao Tsetung, a modernização da economia com Deng Xiaoping, e a restauração da China como grande potência com Xi Jinping: “a China ergueu‑se, enriqueceu e está pronta para voltar ao centro da política internacional.”

Na sua ascensão dramática, Xi tem de enfrentar rivais poderosos na Comissão Permanente do Bureau Político, onde têm assento os “sete dragões” que dirigem a China. Os “imortais” da velha guarda estão com Xi contra Li Keqiang, que vai substituir Wen Jiabao no lugar de primeiro‑ministro, mas Bo Xilai, o chefe carismático de Chongqing (a maior cidade chinesa com mais de 25 milhões de habitantes) é, tal como Xi, filho de um velho revolucionário e antigo vice‑primeiro‑ministro, demitido e perseguido durante a “Revolução Cultural”, e conta com apoios importantes, como o de Zhou Yongkang, responsável pela segurança interna: ambos são presos no início de uma campanha contra a corrupção que investiga quase três milhões de quadros e condena um milhão e meio de membros do PCC.

Desde o início, a prioridade de Xi é consolidar o Partido para impedir a repetição da catástrofe soviética: “Em termos proporcionais, o PCUS tinha mais membros do que o nosso, mas caiu de um momento para o outro: ninguém foi capaz de o defender.” O essencial, para o novo secretário‑geral, é a ideologia marxista‑leninista: “Rejeitar a história do PCUS, rejeitar Lenin e Stalin, é cair no niilismo histórico.” Como no tempo de Mao, o “socialismo com características chinesas” volta a ser apresentado como um modelo universal.

Segundo as regras definidas por Deng Xiaoping, no final do seu primeiro mandato Xi Jinping deveria anunciar o seu sucessor para 2022. Mas Xi, o primeiro secretário‑geral a não ser escolhido por Deng, muda as regras do jogo e retira da Constituição a cláusula que limita o número de mandatos do presidente da República Popular da China. Em 2017, o princípio da “Nova Era” coincide com o fim da “direcção colectiva” e da limitação de mandatos que marcou o período das reformas: dois anos depois, Xi tem direito a ser tratado como “o dirigente do povo”, uma denominação até então reservada a Mao Tsetung.

Xi Jinping define uma nova linha geral, cujo tema dominante é o “sonho chinês” sobre o “renascimento da China” e a restauração da sua posição histórica na ordem mundial. Xi fixa duas datas na “estratégia dos centenários”: em 2021, nos cem anos da fundação do PCC, a China deve completar a construção de uma sociedade “moderadamente próspera” em todos os domínios e, em 2049, nos cem anos da fundação da República Popular, a China deve ser “um país socialista moderno,  próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso”. Nessa data, a questão de Taiwan deve estar resolvida para garantir a “reunificação completa” da China, no momento em que terminam os cinquenta anos do período de transição durante o qual está prevista a autonomia das regiões administrativas especiais de Hong Kong e de Macau, no quadro do princípio “um país, dois sistemas”.

O “sonho chinês” realiza‑se com as novas Rotas da Seda. A China projecta o seu novo poder através de uma estratégia de conectividade política, económica, cultural e tecnológica.
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Em 2049, a China deve ultrapassar os Estados Unidos em todos os domínios relevantes na avaliação do poder nacional para substituir a ordem liberal das potências marítimas, dominante nos últimos cinco séculos — classificados pelo grande historiador das civilizações Arnold Toynbee como a “era gâmica”, em homenagem ao navegador português — pela ordem hierárquica das potências continentais. Yuan Peng, vice‑presidente do Instituto de Relações Internacionais Contemporâneas, resume a visão chinesa da nova ordem mundial: “A ‘grande periferia’ devia ser uma estrutura de ‘círculos concêntricos’ cujo centro é a China e que tem ‘três anéis’: os catorze países com fronteiras com a China pertencem ao ‘anel interior’; o ‘anel intermédio’ inclui os países marítimos vizinhos e  também as áreas que se estendem do Pacífico Ocidental ao Oceano Índico e ao Médio Oriente, bem como partes da Ásia Central e da Rússia que não são contíguas à China; o ‘anel exterior’ alarga‑se para incluir a África, a Europa, a América e os dois Pólos.”

As novas Rotas da Seda, que devem ligar a China à Europa através da Eurásia e do Índico, confirmam a sua determinação em moldar as relações internacionais à escala global e a sua vontade de mudar o sentido da história. Em 2013, as Rotas da Seda são anunciadas pelo próprio secretário‑geral, que apresenta em Astana, no Cazaquistão, a nova Rota da Seda terrestre e, em Jakarta, na Indonésia, a nova Rota da Seda marítima: para simbolizar o fim da dominação ocidental e a ressurgência asiática, a primeira inverte o sentido da expedição de Marco Polo; a segunda, o da viagem de Vasco da Gama.

A China do século XXI tem como referência electiva a China do século XV, quando os imperadores da dinastia Ming dominavam a Ásia e o almirante Zheng He comandou as esquadras chinesas até chegar à África Oriental: segundo Xi Jinping, “o futuro encontra‑se no passado”. Xi é o responsável pela criação de uma armada moderna, que deve ter capacidade para intervir no Pacífico e no Índico: nos últimos oito anos, a China construiu mais navios de guerra do que os Estados Unidos, incluindo o seu segundo porta‑aviões. A marinha chinesa participou nas operações militares internacionais contra a pirataria no Índico e, desde 2017, tem a sua primeira base naval em território estrangeiro, no Djibouti.

As Rotas da Seda chinesas, que passaram a ser designadas como a Iniciativa da Cintura e da Rota (BRI), alargaram‑se para incluir parceiros de todos os continentes. Nesse quadro, a China criou uma Rota da Seda polar, que completa as ligações marítimas com a Europa pelo Oceano Árctico, em parceria com a Rússia, assim como com a Noruega, a Islândia e a Groenlândia. A China quer vir a ser, tal como os Estados Unidos e a Rússia, uma das potências simultaneamente presentes no Árctico e na Antárctida.

O “sonho chinês” realiza‑se com as novas Rotas da Seda. A China projecta o seu novo poder através de uma estratégia de conectividade política, económica, cultural e tecnológica, incluindo a formação de redes no domínio das tecnologias avançadas, como a nova geração de telecomunicações móveis (5G), ou no domínio das infraestruturas portuárias e ferroviárias. As entidades chinesas controlam portos marítimos desde Darwin, no Pacífico, a Hambantota, no Índico, ao Pireu, no Mediterrâneo, e a Kirkenes, no Árctico, e construíram o porto seco de Khorgos no Cazaquistão, no eixo das ligações ferroviárias que ligam a China à Europa — nomeadamente ao porto seco de Duisburg, na Alemanha. No mesmo sentido, Pequim passou a ter capacidade financeira para fazer investimentos com um impacto relevante nas economias avançadas, assim como empréstimos aos países em desenvolvimento — Angola, a Venezuela, o Paquistão e a Mongólia estão entre os maiores devedores da China.

Carlos Gaspar é autor do livro «O Mundo de Amanhã: Geopolítica contemporânea», disponível na loja online da Fundação por 3,15€. Com 10% de desconto, portes de envio gratuitos e possibilidade de pagamento via Multibanco, crédito ou MB WAY.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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