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No cenário pós-pandemia, a economia e o trabalho não voltarão a ser os mesmos

“Uma das vítimas da pandemia poderá ser a globalização económica. É verdade que, depois de várias décadas de criação de interdependências cada vez mais fortes entre as diversas economias do planeta, o mundo parecia, já antes da Covid-19, destinado a assistir a um abrandamento da globalização. Mas agora, aquilo que poderá acontecer é mesmo a uma marcha-atrás. E isso significará uma reindustrialização da Europa, o que na prática quer dizer abrir a porta a mais intervenções do Estado."
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Com a pandemia a dar finalmente sinais de recuo na maior parte dos países, o desejo de um rápido regresso à normalidade cresce de dia para dia na mente de todos. Mas, ao mesmo tempo, são cada vez menores as dúvidas de que na economia, no mercado de trabalho, no funcionamento das empresas, no próprio comportamento de cada um de nós, vai mesmo haver um antes e um depois do novo coronavírus.

Maiores reticências relativamente à globalização, mais aversão ao risco por parte das empresas, reforço do papel dos Estados e riscos de aumento da desigualdade, mas também um impulso para a utilização da tecnologia e uma redobrada abertura para novos modelos de trabalho são algumas das tendências que prometem dominar a realidade pós-pandemia. A incerteza ainda é grande, mas a convicção de que se está a viver um momento de ruptura com o passado poucas vezes terá sido tão forte.

A excepcionalidade da actual crise é fácil de perceber quando se olha para as estatísticas. Para travar a pandemia, os governos viram-se forçados a parar uma parte substancial da actividade económica, e o resultado foi uma recessão simultânea em praticamente todas as economias do planeta. Os países desenvolvidos registam quedas do PIB este ano próximas de 7%, as potências emergentes interrompem o longo período de expansão das últimas décadas e países em desenvolvimento voltam a dar um passo atrás no seu caminho de fuga à pobreza.

Esta é para já, estima o Fundo Monetário Internacional, a maior contracção da economia mundial desde a Grande Depressão dos anos 30 do século XX. E isto num cenário que, ainda assim, parte do princípio de que, depois da queda abrupta da primeira metade de 2020, se irá começar a assistir a uma retoma económica já a partir do Verão.

Marcha-atrás na globalização

Um choque económico deste tipo, sem paralelo nas últimas décadas, deixa, só por si, marcas. E no caso desta crise, provocada por uma pandemia que forçou à alteração de comportamentos de todos na sociedade e que tornou incertas coisas que antes eram dadas como adquiridas, há motivos para pensar que se poderá estar perante uma alteração de tendências aos mais variados níveis.

Uma das vítimas da pandemia poderá ser a globalização económica. É verdade que, depois de várias décadas de criação de interdependências cada vez mais fortes entre as diversas economias do planeta, o mundo parecia, já antes da Covid-19, destinado a assistir a um abrandamento da globalização. Mas agora, mais do que um abrandamento, aquilo que poderá acontecer é mesmo a uma marcha-atrás.

“O actual recuo [no processo de globalização] começou com a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016, que conduziu à guerra das taxas alfandegárias entre os EUA e a China. A pandemia terá provavelmente um ainda maior impacto negativo de longo prazo no comércio, em parte porque os governos reconhecem de forma crescente que precisam de olhar para as suas capacidades ao nível da saúde pública como um imperativo de segurança nacional”, previu recentemente o economista norte-americano Kenneth Rogoff.

De facto, as paragens na actividade económica provocadas pela pandemia colocaram à vista de todos, de uma forma bem mais clara do que tinha acontecido na grande crise financeira internacional de 2008/2009, a enorme dependência económica entre os diversos países. E fizeram-no, sobretudo, por força dos aspectos negativos dessa dependência.

Quando, logo no início do ano, as fábricas chinesas suspenderam a sua actividade, tornou-se evidente que muitas fábricas na Europa e nos EUA teriam, mesmo sem que ali chegasse o vírus, muitas dificuldades em continuar a operar já que dependiam grandemente das componentes fabricadas a baixo custo pela China.

Depois, quando o coronavírus entrou na Europa e nos EUA e os governos dessas zona do globo perceberam que precisavam de reforçar os sistema de saúde com máscaras e ventiladores, ficou claro que quase todos os fornecedores estavam situados na China, passando-se, não só a falar de uma dependência económica, como também de uma dependência relativamente a um bem público essencial, como é a saúde.

Reindustrialização da Europa

Isto está já a conduzir a alterações de políticas cujo sentido é o da reversão de muitos aspectos da globalização. Na Europa, até há pouco tempo um dos blocos defensores das vantagens da abertura do comércio internacional, o discurso político está agora virado, nas principais capitais como Berlim e Paris, mas também em Lisboa, para temas como a reindustrialização europeia, o que na prática quer dizer abrir a porta a mais intervenções do Estado, que permitam num futuro próximo a existência de fábricas na Europa a produzir aquilo que agora é preciso importar de países asiáticos, e em particular da China.

Em paralelo com o fundo de recuperação europeu para apoiar os países em dificuldades, acordado entre França e a Alemanha, está também a ideia de que as regras da concorrência em que assentava o mercado único não devem agora pôr em causa a capacidade de a Europa ter os seus “campeões” nos mercados mundiais, abrindo-se assim a porta a ajudas do Estado em larga escala como as que já estão a ser feitas em empresas de aviação como a Lufthansa.

“Vamos assistir a uma reindustrialização do Ocidente, um recuo da China e a um certo grau de desglobalização económica”, dizia o economista franco-americano Guy Sorman logo no início da crise, numa previsão que desde aí, passo a passo, apenas se tem vindo a confirmar.

Neste processo de desglobalização, a relação entre os EUA e a China, a maior potência mundial e a aspirante a sucedê-la, desempenha um papel fulcral. Neste caso, se antes da pandemia parecia existir uma relação de tensão permanente em que os interesses políticos do momento evitavam uma escalada do conflito, agora já não pode ser colocada de lado a hipótese de uma deterioração brusca das relações, com consequências para todo o planeta.

A administração Trump está a fazer da atribuição das culpas da pandemia à China o seu principal argumento de defesa relativamente à evolução da doença nos EUA, prometendo novas subidas de taxas alfandegárias e penalizando as empresas chinesas que tentam conquistar mercado internacional, especialmente no sector tecnológico. Em resposta, o discurso de Pequim tem-se tornado também cada vez mais agressivo relativamente às intenções dos EUA.

Um mundo em que as economias dos EUA e a China deixam de estar interligadas é uma mudança radical para um sistema que, nas últimas décadas, se habituou a ver empresas multinacionais a crescer e a lucrar na base de cadeias de fornecimentos e força de trabalho de muito baixo custo. Agora, tanto os governos como as empresas percebem que vai ser preciso, por uma questão de redução de riscos, uma abordagem mais local em que a produção de bens passa a estar mais próxima dos consumidores, mesmo que isso signifique maiores custos de produção.

O processo parece inevitável, sendo pouco provável que as vozes defensoras das vantagens da globalização se façam, desta vez, ouvir. “Os apelos para um novo compromisso com a globalização têm muito poucas possibilidades de ganhar tracção no rescaldo da pandemia do Covid-19”, , assinalou Mohamed El Erian, ex-CEO da gestora de activos internacional PIMCO. “Para aqueles que ainda pretendem preservar a globalização, o melhor é focarem-se em minimizar a disrupção causada pelo período vindouro de desglobalização, preparando o terreno para um processo mais sustentável depois”.

Estado com papel reforçado nas economias

Outra tendência a que se deverá assistir no mundo pós-pandemia é a de um reforço do papel dos Estados na economia.

No imediato, a intervenção do sector público é já notória e praticamente consensual. Qualquer que seja a cor política dos governos, em todos os países o Estado está a ser chamado a limitar os prejuízos sofridos pelas empresas e os danos registados nos mercados. Isto irá conduzir a um aumento nunca antes visto da dívida pública à escala mundial, que previsivelemente poderá conduzir a aumentos de impostos no futuro. Parece no entanto indiscutível que, seja do ponto de vista económico seja do ponto de vista orçamental, tudo seria ainda pior se os Estados agora não fizessem nada.

Mas para além desta intervenção no imediato, é agora também evidente que, com a actual crise, a confiança na capacidade dos mercados para resolver os problemas diminuiu e que ganhou força a ideia de que os Estados têm de estar melhor preparados para enfrentar riscos e para proteger aqueles que mais têm a perder quando as coisas correm mal.

Uma das consequências já evidentes da presente crise é um aumento da desigualdade. Vários estudos demonstram que os mais pobre não só estão a ser os mais afectados pela doença, como estão a ser os mais penalizados nos seus rendimentos, pelo facto de terem menos possibilidades de recorrer ao teletrabalho e de terem mais dificuldade de abdicar do rendimento. E a experiência de anteriores pandemias, como revela um estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional, aponta para que uma das consequências deste tipo de crises seja, também a prazo, um agravamento dos indicadores de desigualdade, algo que reforça o apelo a que os Estados sejam mais interventivos.

Como será feito esse aumento do papel do Estado, é ainda uma questão em aberto. Nesta fase, como demonstra por exemplo o fundo de recuperação proposto pela Comissão Europeia, a intenção é a de ligar um reforço da intervenção a prioridades como a economia verde e a digitalização, para além da melhoria de capacidades no sector da saúde. Mas aquilo que irá acontecer dependerá muito de Estado para Estado.

Dani Rodrik, economista norte-americano alertou recentemente contra o erro que seria repetirem-se, nesta matéria, receitas do passado: “A única questão é saber qual a forma que este Estado mais activista irá tomar. Não podemos colocar de lado a hipótese de um regresso a um dirigismo ao estilo antigo que atinge poucos dos resultados pretendidos. Por outro lado, o abandono do fundamentalismo de mercado pode assumir uma forma genuinamente inclusiva focada numa economia verde, em bons empregos e na reconstrução da classe média. Uma reorientação deste tipo tem de ser adaptada às condições conómicas e tecnológicas do momento presente e não apenas imitar os instintos políticos das três décadas douradas do pós-Segunda Guerra Mundial”.

No entanto, as mudanças provocadas pela pandemia estão longe de se cingirem ao comportamento dos Estados ou às tendências macroeconómicas. Cada empresa, trabalhador e indivíduo está a passar por mudanças de comportamento por causa da pandemia que, em muitos casos, deverão ser para ficar.

Teletrabalho, uma realidade que veio para se instalar

No mercado de trabalho, uma grande alteração salta à vista de todos e, tudo indica, veio para ficar: uma percentagem grande das pessoas – no caso de algumas empresas, a totalidade dos funcionários – começou, de um momento para o outro, a funcionar em regime de teletrabalho.

A qualidade da experiência e o nível de desempenho conseguido variará de empresa para empresa e de pessoa para pessoa, mas há sinais de que, mesmo depois desta pandemia, parte do novo teletrabalho se tornará permanente.

Nos Estados Unidos, grandes empresas como a Google, Morgan Stanley, JP Morgan ou a Amazon já anunciaram um prolongamento do programa de teletrabalho lançado durante a crise. No caso o Twitter, a empresa decidiu mesmo que este regime passaria a ser a nova realidade.

À primeira vista, ficando comprovado que o teletrabalho não altera substancialmente o desempenho, esta é uma decisão lógica de vários pontos de vista: para o trabalhador pode representar um ganho de qualidade de vida, já que evita o tempo perdido nas deslocações da casa ao trabalho e pode facilitar uma gestão mais flexível do tempo passado com a família e em trabalho. E para as empresas é a oportunidade para oferecer aos seus trabalhadores um benefício não financeiro que estes valorizam, possibilitando ainda poupanças consideráveis nas despesas com o espaço de escritório.

O facto de uma parte significativa da força de trabalho passar a desempenhar as suas funções a partir de casa é uma mudança que, para além de constituir um desafio para as práticas de gestão das empresas, tem implicações muito significativas em diversas outras áreas da economia.

Logo de imediato, o sector imobiliário na componente de escritórios pode vir a sofrer uma diminuição permanente da procura, com efeitos negativos nos preços. Os sectores que de alguma forma estejam relacionadas com a deslocação destes trabalhadores de casa para as empresas também saem afectados.

É o caso dos transportes públicos, dos combustíveis ou da venda de automóveis. De igual modo, em países como Portugal onde o almoço em dia de trabalho é muitas vezes feito em restaurantes,  o sector da restauração também tem a perder com esta nova realidade, já que muitas pessoas passam a fazer as suas refeições em casa.

Quem fica em teletrabalho terá incentivos para comprar mais alimentos nas lojas de comércio a retalho, para consumir em casa e investir em equipamento para a sua habitação, por exemplo na área das comunicações e tecnologia.

Quem está a ganhar?

Outras mudanças de comportamento prometem também gerar mais vencedores e vencidos no cenário pós-pandemia. A Amazon, a gigante norte-americana das vendas online, bateu em bolsa sucessivos recordes da sua capitalização. E confirma, sem surpresa, que o sector do comércio electrónico aproveitou o fecho das lojas físicas para ganhar nos últimos meses uma enorme quota de mercado.

E embora não vá manter nos próximos meses o mesmo tipo de domínio no mercado, existe a expectativa que os hábitos criados nos consumidores durante estas semanas de pandemia terão efeitos de longo prazo. Inquéritos realizados nas últimas semanas nos EUA revelam que os consumidores têm agora mais confiança a realizar compras online do que tinham antes da crise.

Também vencedores são os gigantes digitais, que numa altura em que estavam sob pressão para limitarem a sua enorme influência na sociedade, ganharam ainda novo fôlego provocado pelo aumento forçado da interacção digital entre as pessoas. E destacaram-se novos grandes actores que antes da crise eram claramente actores secundários.

A plataforma de reuniões online Zoom, por exemplo, ultrapassou durante a presente crise a capitalização bolsista da histórica fabricante de automóveis General Motors, numa ultrapassagem que simboliza aquilo que podem ser as mudanças entre a velha economia e a nova economia.

Automação pode ser solução para sectores em perda

Entre os sectores perdedores, destacam-se logo de forma clara todos aqueles cuja actividade conduz a uma interacção social intensa. É o caso dos transportes, especialmente o aéreo, e de indústrias como as do turismo e da restauração.

Nestes casos, a paragem foi quase total quando as medidas de confinamento estavam a ser aplicadas na sua totalidade. Agora entramos numa fase em que a actividade começou a recuperar à medida que se faz o desconfinamento, mas não existem dúvidas de que um regresso à realidade do passado será lento e provavelmente nunca acontecerá na totalidade.

Todas estas indústrias que não tem uma forma óbvia de produzir e fornecer os seus bens e serviços sem contacto pessoal directo – seja entre os funcionários, seja entre funcionários e clientes, seja entre os clientes – enfrentam neste momento um desafio que será decisivo para a sua sobrevivência.

Algumas das soluções encontradas poderão ter de passar pela aposta mais forte em automação e robotização. Isto constitui um problema para muitos milhões de trabalhadores por todo o mundo fora.

No caso de Portugal, revela um estudo publicado pelo Center of Economics for Prosperity – PROSPER, o número de empregos que se podem considerar numa situação de risco por causa destas mudanças estruturais trazidas pela pandemia é muto elevado.

Cerca de dois terços dos empregos em Portugal não podem ser realizados facilmente em teletrabalho, 22% requerem interacções face a face ou muito intensas e 36% são empregos facilmente automatizáveis.

Uma mudança no mercado de trabalho que há muito já se adivinhava, mas que a pandemia do coronavírus veio acelerar. Fica o desafio, para o Estado, as empresas e as famílias, para encontrarem formas de acomodar estas rupturas o menos dolorosamente possível.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

 

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