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GPS #65: A Amazónia não é o «pulmão do planeta». «Precisamos muito dela, mas para outras funções»

Entrevista GPS #65: A Amazónia não é o «pulmão do planeta». «Precisamos dela, mas para outras funções»

Entrevista a António Ferraz, investigador do Jet Propulsion Laboratory da NASA, nos Estados Unidos.
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Qual é a sua área de investigação é porque é que o motiva?

O meu principal interesse passa por explorar medições feitas por sensores de teledeteção, a partir de plataformas aerotransportadas ou de satélites, para caracterizar e monitorizar a estrutura, diversidade e densidade das florestas. Ultimamente tenho centralizado a minha atenção em florestas tropicais que são ecossistemas altamente complexos e diversos.

As observações do planeta Terra a partir do espaço começaram nos anos 50 e tiveram grandes desenvolvimentos nos anos 70 que permitiram ter uma ideia global da extensão e composição das florestas. No entanto, apenas nas últimas duas décadas se desenvolveram técnicas de teledeteção com resolução suficiente para mapear a floresta nas suas componentes horizontal e vertical, como por exemplo cartografar a biodiversidade existente ou caracterizar as várias camadas florestais como a copa arbórea, o sub-bosque e a vegetação arbustiva. Conhecer a densidade e diversidade estrutural das florestas ao longo do planeta é essencial para quantificar os serviços que as florestas nos prestam, assim como para prever o impacto das mudanças globais. Florestas compostas por várias camadas florestais são por norma mais resilientes ao aumento de temperatura e ainda optimizam o sequestro de dióxido de carbono da atmosfera, o que mitiga as mudanças climáticas. A complexidade estrutural fomenta habitats de qualidade que albergam muita biodiversidade vegetal e animal. A caracterização das camadas florestais é ainda essencial para estimar o perigo e comportamento de incêndios florestais. 

A minha motivação tem na sua génese um gosto por mapas e um impulso para cartografar fenómenos que não tenham já sido documentados. Comecei a sonhar com os mapas dos navegadores portugueses e acabei a cartografar florestas a três dimensões, quando esta área dava os primeiros passos, no início da minha carreira científica. Cresci numa área rural da Beira Interior em que a paisagem florestal sofreu mudanças drásticas ao expandir, devido ao abandono agrícola, o que foi seguido por um retrocesso provocado pelos incêndios florestais.

Em que consiste o seu dia-a-dia de trabalho?

Grande parte do meu trabalho passa por desenvolver metodologias para caracterizar florestas com estruturas complexas como as florestas tropicais e mediterrânicas. Utilizo maioritariamente dados adquiridos por sensores LiDAR (light detection and ranging) que emitem feixes laser para a superfície terrestre e medem distâncias contabilizando o tempo entre a emissão e recepção dos feixes. Esta técnica é também utilizada na condução autónoma de veículos, em que lasers medem distâncias para com os objetos para modelizar o espaço envolvente a três dimensões e assim identificar a rodovia. No caso da floresta, parte da energia dos feixes laser consegue penetrar a copa arbórea por entre a folhagem atingindo o solo num processo que imita a luz solar. O LiDAR fornece modelos tridimensionais do solo e dos vários elementos vegetais da floresta.

A minha investigação tem incidido na interpretação do sinal LiDAR para inferir variáveis biofísicas, incluindo o número de árvores, a distribuição da frequência dos tamanhos das árvores, a quantidade de camadas florestais, a estimação das reservas de carbono ou a diversidade estrutural das florestas. O detalhe com que caracterizamos a floresta depende da resolução do sistema, tendo os sistemas aerotransportados maior resolução do que os espaciais. Investigo também as sinergias entre técnicas LiDAR com medições feitas por outros sensores como imagens espectroscópicas que medem a interação entre a radiação solar e a vegetação. A fusão entre as técnicas permite estimar a biodiversidade vegetal da área, avaliar o stress das plantas devido a uma seca ou quantificar a capacidade fotossintética da floresta, que é um indicador da vitalidade e capacidade para sequestrar carbono.        

Regionalmente, as chuvas reguladas pela floresta Amazónia irrigam os campos agrícolas e pastorícios de praticamente toda a América do Sul.

Ao longo da sua carreira, qual foi o episódio profissional que mais o marcou?

O dia da defesa da minha tese de doutoramento. Além de ter família, amigos e colegas todos juntos na audiência, escrevi e defendi a tese usando uma língua que não falava quando comecei quatro anos antes: a língua francesa. Além do reconhecimento pelo conteúdo científico da tese, que abriu portas, existiu uma gratificação fora da esfera profissional visto que a ciência já não fala francês.

Que impacto é que a sua investigação poderá ter na sociedade e no mundo?

A caracterização e monitorização de ecossistemas florestais a nível global e de forma consistente tem várias aplicações. Por exemplo, países que monitorizem com precisão a reservas florestais captadoras de dióxido de carbono podem reclamar legitimamente créditos no mercado de carbono aos países desenvolvidos que, por norma, são emissores. Este mercado é essencial para minimizar a urgência do desmatamento por parte de países com grandes massas florestais e com necessidades de desenvolvimento, como acontece em vários países tropicais. Por outro lado, o aumento da população mundial não permite preservar ou reflorestar indiscriminadamente porque existem necessidades alimentares crescentes. A minha investigação tenta identificar as condições climáticas, edáficas e topográficas que optimizem os serviços da floresta, nomeadamente a conservação de carbono e biodiversidade nas florestas. Espero que os produtos gerados pela minha família científica possam servir para que decisores técnicos e políticos melhorem o planeamento do uso do solo, a bem da sustentabilidade do planeta.

Que impactos podemos antever que a desflorestação da Amazónia terá para o Brasil e para o mundo?

Para desflorestar a Amazónia não é preciso cortar todas as árvores existentes. A deflorestação continuada vai criar desequilíbrios no ecossistema que em grande parte é auto-suficiente. Por exemplo, as árvores conservam água no solo e consomem-na apenas segundo as necessidades. A água é depois libertada através da transpiração das árvores num processo que vai gerar chuvas. O abatimento massivo de árvores vai ter impacto no ciclo da água, pois exposição solar directa vai aumentar a velocidade com que a água se evapora dos solos, o que pode converter a floresta tropical húmida (tropical rain forest) em savana. É o chamado “tipping point”, o ponto de não retorno, que vem a ser muito estudado.             

Regionalmente, as chuvas reguladas pela floresta Amazónia irrigam os campos agrícolas e pastorícios de praticamente toda a América do Sul. Globalmente, a conversão de floresta tropical húmida para savana libertaria quantidades gigantescas de dióxido de carbono para a atmosfera, contribuído consideravelmente para o aumento das temperaturas e nível do mar. Além disso, perderíamos grande percentagem da biodiversidade do planeta. É interessante verificar que crescemos a ouvir dizer que a floresta Amazónica é o pulmão do planeta, mas hoje sabemos que o seu efeito na concentração de oxigénio na atmosfera é residual dado que consume praticamente todo o oxigénio que produz através da fotossíntese, pois também precisa de respirar. Precisamos muito da Amazónia, mas para outras funções.

Consulte o perfil de António Ferraz no GPS-Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

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Portuguese, Portugal