A
A
Espaco-A-Odisseia-Que-Nos-Deu-O-Presente

Espaço: A odisseia que nos deu o presente e promete o futuro

Entrevista à geocientista Joana Neto Lima
7 min
“Se duas potências mundiais não tivessem ido à Lua, hoje não teríamos a ressonância magnética, o ar condicionado, o GPS”.  A geocientista Joana Neto Lima, que durante quatro anos trabalhou no Centro de Astrobiologia (CAB), em Madrid, a estudar a habitabilidade e as características de Marte, acredita que o espaço “é uma boa maneira de fazer as pessoas sonhar e tentar conquistar fronteiras”. Está de regresso a Portugal para continuar a estudar. “Estou num limbo em que muitos cientistas se encontram, infelizmente”, desabafa, depois de ver recusada a sua candidatura a bolsas de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Na Universidade do Minho, estuda a evolução das superfícies planetárias. “Nós calculamos o futuro da Terra através dos outros planetas e usamos o passado da Terra para avaliar o que poderá ter acontecido noutros corpos celestes.” A história do nosso planeta está gravada nalguns dos locais mais remotos e inóspitos, interditos à vida humana, mas que podem ajudar-nos a desvendar alguns dos segredos de Marte.

 

Quando trabalhou no Centro de Astrobiologia, em Madrid, colaborou em missões da NASA e da ESA?

Sim. Trabalhávamos com os rovers planetários. No CAB há um grupo que controla directamente os instrumentos atmosféricos a bordo do Curiosity, em Marte.  Antes de a minha bolsa acabar, fiz uma proposta para calibrar os instrumentos de espectroscopia (infravermelho, raio-X, etc.) a bordo do Mars 2020. Uns colegas foram à Islândia recolher amostras nos géiseres.

 

O que é que aprendemos com os dados recolhidos em Marte?

Com Marte o que se faz é estudos análogos. Ou seja, a Terra serve de modelo para comparações. Imaginemos que na Terra identificamos um determinado tipo de minerais que só aparece em água salgada mais ou menos quente, e que detectamos o mesmo tipo de minerais em Marte. Ambos devem ter sido originados pelo mesmo processo. Agora estamos a estudar se ainda há sismos em Marte, se o seu coração ainda bate. Porque é o mesmo futuro que nos reserva: a Terra arrefecer tal como Marte, o movimento das placas tectónicas parar, acabar tudo e ficarmos uma rocha fria. Nós calculamos o futuro da Terra através dos outros planetas e utilizamos o passado da Terra para avaliar o que poderá ter acontecido noutros corpos celestes.

 

Sabemos tudo o que há a saber sobre o nosso planeta?

Estamos sempre a descobrir que existe vida em locais extremos da Terra. Por exemplo, no deserto de Atacama, no Chile, e no deserto de Danakil – Depressão de Afar –, na Etiópia. Com temperaturas, ambientes e condições tão extremas, não existe vida humana nessas zonas. Mas existem ecossistemas microscópicos, dentro dos géiseres.

 

Como é que esses microorganismos sobrevivem?

Na Terra já houve cinco extinções massivas e sempre sobreviveram algumas espécies, porque a vida teve estabilidade suficiente para se conseguir diversificar e ocupar todos os nichos. Além de ser preciso haver condições para haver vida, é preciso que haja tempo para ela se adaptar e evoluir. Por exemplo, em Rio Tinto, na Espanha, encontraram microrganismos que vivem e se reproduzem dentro da rocha. Lá também se testa muito do material que vai para Marte – sensores e instrumentos –, porque é um ambiente extremo.

 

O vulcão dos Capelinhos, no Faial, poderá vir a ser usado para testes semelhantes.

Pode ser um local bom para testar os próprios rovers. É um parque natural, está pouco alterado. Há dois anos entrei em contacto com eles, porque estávamos interessados em amostras de faialite. Três anos depois continuo sem resposta. A faialite é uma das rochas primordiais do sistema solar, mas um dos minerais mais difíceis de encontrar – porque facilmente se transforma em contacto com a água. É essencial no estudo de Marte porque tem ferro, que é fundamental para a existência de vida. Eu trabalho com serpentinização, uma reacção que pode estar por detrás do metano que detectámos em Marte. 

 

Há uns anos ganhou uma bolsa para fazer investigação no Japão. O que é que lá encontrou?

Sim, estive na Universidade de Okayama. Fui porque eles usavam uma técnica com alta pressão e elevada temperatura para estudar as zonas de subducção [área de convergência de placas tectónicas]. Estava relacionado com a pesquisa sobre serpentinização que eu fazia no Centro de Astrobiologia, em Madrid. Nós pensávamos que era um fenómeno que só ocorria no meio do Oceano Atlântico, porque tem um campo hidrotermal com temperaturas entre os 90 e os 400ºC e um ecossistema supercomplexo. As primeiras formas de vida surgiram assim, em fontes hidrotermais e foram evoluindo até aquilo que se conhece hoje. Entretanto, descobrimos que a serpentinização pode ocorrer numa série de locais, incluindo na superfície terrestre – como em Cabeço de Vide, no Alentejo.

 

Parece que se investe mais em explorar o espaço do que o fundo dos oceanos.

O fundo do oceano é muito difícil de estudar, de recolher amostras. Quanto mais fundo estamos, maior a coluna de água, maior a pressão e isso complica. Existem estudos quando se fazem os travessos de um lado ao outro do oceano Atlântico e fazem-se sondagens – penso que acontece a cada cinco anos. Em termos de investimento, parece-me estar equilibrado. No meu caso, 80% do trabalho é feito na superfície terrestre, 20% no oceano. Muita da tecnologia espacial é depois utilizada na Terra. Nunca podemos falar em investimento perdido. Se duas potências mundiais não tivessem ido à Lua, hoje não teríamos uma série de tecnologias que nem sequer atribuímos a essa epopeia – como a ressonância magnética, o ar condicionado, o GPS. O espaço é uma boa maneira de fazer as pessoas sonhar e tentar conquistar fronteiras.

 

Que desenvolvimentos para a ciência e tecnologia é que esta nova corrida espacial pode trazer?

Só o tempo dirá. Mas se a primeira, que não tinha como objectivo contribuir para o avanço tecnológico nem científico, produziu tanto conhecimento e utilidades – imaginemos esta que está a ser construída com esse intuito. Todo o desenvolvimento que Elon Musk tem promovido através das suas empresas, seja através de baterias cada vez mais potentes, foguetões reutilizáveis… Será um futuro extraordinário.

 

Este impulso do sector privado pode fazer com que o avanço seja ainda mais rápido?

NASA é um gigante adormecido há muitos anos. Se algum veículo da SpaceX explodir, o problema é do Elon Musk. Para a NASA seria uma tragédia. Os privados impulsionaram e acordaram muita gente. Neste momento, há mais jogadores em campo. Temos o Japão, a China – que se afirma cada vez mais como um grande competidor da NASA e a da ESA –, a Arábia Saudita… Uma série de países que antigamente não eram potências espaciais e que agora competem para ultrapassar os jogadores tradicionais. Estou bastante entusiasmada.

 

Não receia que com mais jogadores em campo possa haver mais conflitos do que na Guerra Fria?

Tendo em conta que a motivação é diferente, penso que está mais equilibrado. Não dá para tomar lados. Além disso, estamos todos interligados. Um cientista que trabalhe num projecto da NASA, trabalha também com a ESA, com o Japão; temos o dedo quase em tudo. E as Nações Unidas criaram um órgão chamado UNOOSA – United Nations Office for Outer Space Affairs -, que trabalha em direito espacial. A UNOOSA está a preparar-se para as primeiras colónias humanas em Marte e na Lua. Têm é de trabalhar mais rápido, porque até agora não fizeram nada de peso.

 

Se não têm regulado o espaço o que é que têm feito?

Regulam. Ninguém pode decidir aterrar em Marte sem mais nem menos. Antes disso tem de pedir autorização e tem de ser aprovado. Se eles disserem que não avança, não avança. Portanto, não é assim tão desregulado, oeste selvagem.

 

A agência espacial portuguesa pode vir a ter um papel interessante nesta corrida espacial?

Não me parece. Seria importante que Portugal e as nossas universidades começassem a olhar para o espaço não só como sinónimo de engenharia e tecnologia, mas também de produção científica. Há muito bons cientistas portugueses que estão lá fora porque não podem crescer em Portugal. Tenho uma colega que trabalha com fungos e que, neste momento, tem experiências dela a bordo da Estação Espacial Internacional. Chama-se Marta Cortesão e está na Alemanha.

 

Será que a situação pode melhorar com esta iniciativa?

Não. É mais do mesmo. Uma plataforma de coordenação de iniciativas privadas ou público-privadas, para um mercado onde não vamos conseguir competir com ninguém. Será uma desilusão para muitas pessoas que estão entusiasmadas. Portugal deveria olhar para Espanha, para o INTA – Instituto Nacional de Técnica Aeroespacial. Eles investem tanto em tecnologia como em ciência. Portugal não. Temos uma mente muito pequena. Temos a ideia de que não somos ninguém. Esquecemo-nos que um dia descobrimos o mundo.

 

«As últimas fronteiras da ciência», reveja este Fronteiras XXI

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal