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Em nome do pai

Em nome do pai

Artigo de António Araújo sobre o novo livro de Gregory Clark, convidado do Encontro da Fundação 2017.
6 min
«Que Gregory Clark afirme que a Inglaterra medieval tinha níveis de mobilidade social superiores aos actuais, isso é algo que ultrapassa a nossa compreensão e nos obriga a pensar. Não há maior elogio que se possa fazer a um livro.»

 

Ao contrário do que tem sucedido nesta rubrica «Biblioteca», o livro de que hoje falaremos não é uma obra «leve» ou que se leia como uma novela policial. The Son Also Rises – Surnames and the History of Social Mobility é um livro académico e científico – ou, pelo menos, com pretensões a sê-lo. O seu autor, o economista Gregory Clark, é professor na Universidade de Davis, Califórnia, e já antes havia assinado uma obra com um título inspirado em Hemingway: A Farewell to Alms – A Brief Economic History of the World.

Desta feita, Clark ocupa-se da mobilidade social. Até aqui, nada de novo. Há dezenas ou centenas de livros sobre o problema da desigualdade e da mobilidade social, escritos sob as mais diversas perspectivas. Muitos deles, utilizando aquilo a que Clark designa por «indicadores convencionais», revelam que, pelo menos no Ocidente, nas últimas décadas ou mesmo séculos houve um incremento significativo da igualdade e da mobilidade sociais (ainda que os dois conceitos não sejam totalmente identificáveis). Referem esses trabalhos, por outro lado, que se têm verificado nos últimos anos aumentos, também significativos, das disparidades salariais e do fosso entre os muito ricos e o resto da população, além de uma erosão progressiva, em termos materiais e imateriais, daquilo a que se convencionou chamar «classe média».

A abordagem de Gregory Clark prima pela originalidade quanto ao método e quanto aos resultados alcançados. Ao invés de se fixar nos indicadores tradicionais de riqueza (salários, património, etc.), Clark, por certo com o apoio de uma gigantesca equipa de assistentes de investigação (vários nomes são elencados na ficha técnica, sendo esta, aliás, uma obra escrita em parceria por quatro autores), foi em busca dos apelidos ilustres. E, a partir daí, concluiu que os mesmos nomes sonantes persistem através dos séculos, mesmo com todas as alterações e rupturas verificadas nos sistemas políticos, económicos e sociais. Mais surpreendentemente ainda, a introdução de esquemas de redistribuição do rendimento e de impostos progressivos, a par da criação de apoios sociais e incentivos à mobilidade (ex., no acesso à educação), o statu quo não parece registar mudanças significativas. O livro começa, aliás, pelo mais improvável dos exemplos: a Suécia do Estado-Providência. Clark chega a duas conclusões: (1) actualmente, a mobilidade social na Suécia não se processa a um ritmo mais rápido do que países como o Reino Unido ou os Estados Unidos; (2) actualmente, a mobilidade social na Suécia não se processa a um ritmo mais rápido do que o que se verificava no século XVIII. O Estado social foi um mito?

É preciso ler o livro – e ver o que ele diz. De uma coisa, porém, não se pode duvidar: Gregory Clark fez um trabalho de investigação profundíssimo, quase insano, e não defende «teses» com uma intenção provocatória ou assentes em meros palpites. Tudo quanto se lê em The Son Also Rises é apoiado empiricamente em análises de séries longas (por exemplo, os nomes dos estudantes inscritos nas universidades de elite, Cambridge ou Oxford, da Idade Média aos nossos dias). Haverá muitos pontos que desafiam aquilo a que alguém já chamou a nossa «sensibilidade intelectual» ou, se quisermos, as intuições mais básicas e essenciais que temos – ou tínhamos – sobre a evolução da estrutura social no Ocidente. Que Clark fale da rigidez hierárquica do ancestral sistema de castas na Índia, na subsistência do papel dos brâmanes, no elevado estatuto dos cristãos coptas no Egipto ou, no extremo oposto, na ostracização dos ciganos em toda a parte, nada disso causa perplexidade. Que afirme, ao mesmo tempo, que a Inglaterra medieval tinha níveis de mobilidade social superiores aos actuais, isso sim, é algo que ultrapassa a nossa compreensão e nos obriga a pensar. Não há maior elogio que se possa fazer a um livro.

Como é evidente, poderemos contestar o método usado por Gregory Clark, dizendo que a persistência dos apelidos sonantes não é, por si só, prova de que não existe mobilidade social ou que ela é reduzida ou menos rápida do que julgamos. Poderemos, de igual modo, colocar a questão fatal: e se, após o seu imenso trabalho de pesquisa, o autor tivesse chegado à conclusão oposta, a de que existiram e existem elevados níveis de mobilidade social e igualdade de oportunidades? Esta pergunta não pretende, de forma alguma, insinuar que Clark manipulou os dados ou só utilizou os que lhe convinham. Nesse aspecto, o livro é exemplar e modelar: para cada país, o autor utilizou fontes próprias, as que considerou mais fidedignas e credíveis, como os inscritos em certas ordens profissionais ou as listagens de nomes da nobreza. «Este livro irá ser controverso» − é a primeira frase da obra. Não se trata, todavia, de uma controvérsia orientada por propósitos panfletários, ideológicos ou políticos. Todas as leituras desse tipo que sejam feitas a partir de The Son Also Rises cabem aos comentadores, sendo da sua exclusiva responsabilidade, não de Gregory Clark, que nesse aspecto preserva uma impassibilidade analítica total e uma contenção verbal impecável, quase clínica. Haverá, num ponto ou outro, alguma «deriva», sobretudo na parte final do livro, quando se dão aos leitores alguns conselhos para que os seus filhos tenham sucesso na vida através dos casamentos com as pessoas certas… Clark distancia-se, ainda que não total ou claramente, de Bryan Caplan e Charles Murray, para quem existem boas razões (egoístas) para ter muitos filhos; e mostra dados suprendentes, como o incremento da taxa de exogamia entre os judeus norte-americanos, ou seja, do casamento com não-judeus. Antes de 1970, apenas 13% dos judeus casavam com gentios; entre 1991 e 2001, essa taxa subiu para 45%. Já agora, outro número: 8% dos alunos suecos com 22 anos obtêm um mestrado nas quatro universidades de elite do país; essa percentagem sobe para 13 a 14% dos alunos com apelidos sonantes. Essa discrepância é, em si mesma, significativa? Ou não será irrelevante para o resultado final: um país com igualdade de oportunidades e mobilidade social entre os cidadãos? Qual o peso efectivo, em termos de mobilidade global, das disparidades detectadas, aqui e ali, por Gregory Clark?

Uma advertência reveladora da honestidade intelectual do autor: Clark não questiona a fiabilidade dos estudos que demonstram a existência de correlações entre mobilidade social e níveis de educação. «O que esses estudos medem, medem-no correctamente», diz. Simplesmente, o autor propõe uma metodologia radicalmente alternativa e inovadora, baseada no escrutínio dos nomes – e na sua perenidade ao longo dos séculos nas posições cimeiras da escala social. Ora, significará isto, em si mesmo, que no todo da sociedade não existiram mudanças e, num cômputo global, um aumento da mobilidade, mesmo mantendo-se no topo, e apenas no topo, alguma rigidez? Será possível distinguir mobilidade social e mobilidade intergeracional? Em que medida se cruzam e sobrepõem, em que medida se afastam e divergem? Eis algumas perguntas que poderão ser feitas directa e pessoalmente ao autor. Gregory Clark estará em Lisboa no próximo dia 30 de Setembro, para participar no Encontro da Fundação Francisco Manuel dos Santos subordinado ao tema da igualdade.

Artigo escrito originalmente para publicação no jornal online ECO.

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