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Discriminação: Julgar um povo à luz do seu líder?

A invasão da Ucrânia criou uma onda de sentimento anti russo. Com a socióloga Alice Ramos procuram-se as raízes e os riscos destes preconceitos nas atitudes perante os outros.
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O cartaz segurado por um cidadão russo pedindo desculpas pela invasão à Ucrânia tornou-se viral, como sinal de que um povo não se confunde com as ações do seu líder. Mas depressa foi ultrapassado pelas notícias de boicotes à cultura, desporto, gastronomia e até a animais vindos da Rússia.

Em certos casos este sentimento anti Rússia visa até os russos que se opõem ao regime e à invasão da Ucrânia. É um filme que se repete, as fobias que resultam de conflitos, atentados ou epidemias, contaminam e alastram nestes dias em que a indignação é inversamente proporcional à reflexão. Hoje procuramos as raízes do preconceito que muitas vezes levam os indivíduos e as sociedades a falharem no teste do estrangeiro, daquele que nos é estranho porque o queremos distante dos nossos valores ou porque o consideramos uma ameaça. Alice Ramos é socióloga, com investigação na área do impacto dos fatores individuais e sociais nas atitudes face aos imigrantes e aos preconceitos. Como é que se constrói a opinião sobre o outro?

Desde pequeninos que temos que organizar a nossa cabeça e construir o que está à nossa volta em categorias, o que visa simplificar para sermos capazes de identificar. Ao fazer este processo de categorização atribuímos características semelhantes a um grupo, e que são dissemelhantes de outro grupo. E fazemos isto relativamente aos grupos sociais e aos grupos humanos.

Mas fazemos isso porque nos fazem fazer isso, a educação que recebemos é que nos leva a isso, ou são outros fatores?

Fazemos para que o mundo tenha algum significado, se não é tudo aleatório. Precisamos de ordem para construir o nosso pensamento e a nossa própria identidade. Um outro generalizado é alguma coisa que eu não posso identificar. Isto constrói-se na família, na escola, nos grupos sociais e meios sociais em que circulamos.

 

Nessa categorização acabamos por colocar as pessoas em caixinhas. Podemos tirá-las das caixinhas conforme as experiências que formos tendo, ou esse lugar inicial onde as colocamos acaba por ser uma coisa permanente?

Podemos mudá-las até pelo contacto que temos com elas. Uma das teorias diz que o contacto com essas pessoas pode desfazer muitos preconceitos. Mas este contacto tem que ser ao mesmo nível social. Se temos relações de poder desiguais, o preconceito vai manter-se.

Quando usamos a expressão valores neste contexto, estamos a falar de uma coisa específica. Não é aquilo de que falamos normalmente quando falamos de valores da sociedade. Pode particularizar?

Os valores são universais e são basicamente os mesmos. E até os podemos dividir em valores que promovem o outro, no sentido de eu querer que as pessoas tenham todas as mesmas oportunidades na vida, que a opinião de todas as pessoas deve ser ouvida. E os valores que me auto promovem. Quero ser uma pessoa com poder, quero ser uma pessoa respeitada. Uma pessoa que dá mais importância a ter poder dará menos importância a achar que todos devem ter oportunidades. Depois há outro eixo, que é aquilo que eu acho que deve ser conservado, as minhas tradições, sentir-me seguro. Há sociedades que valorizam mais os valores da conservação, as tradições, a cultura, obedecer à autoridade. E isto tem implicações nas atitudes, na maneira como se trata as outras pessoas ou na igualdade de género. E sociedades que dão mais importância aos valores da abertura, da mudança, da responsabilidade, da criatividade. Na Europa, normalmente estes valores estão nos países do Norte. E nos países de Leste estão mais os valores da tradição, da conservação. Isto de atribuir valores aos outros é uma justificação que as pessoas arranjam para esconderem as razões que realmente as fazem rejeitar os imigrantes, e que está no preconceito. É justificar de uma maneira que é legitimada pela sociedade.

 

Onde é que estão as raízes do preconceito? É complicado perceber de onde é que surge essa leitura do outro.

Primeiro os estereótipos, porque são os traços que atribuímos a determinado grupo, e que podem ser positivos ou negativos. As pessoas deixam de ser indivíduos, passam a ser vistos como pertencentes a um grupo e ganham as características todas daquele grupo. Mas os estereótipos também podem ser positivos. O preconceito é outra coisa, é a construção de uma imagem negativa das pessoas, e aplica-se ao grupo. O preconceito são emoções, são avaliações, são atitudes negativas que eu tenho relativamente ao outro. Isto é mais difícil de combater, mas combate-se com educação, ensinar as crianças, não só a reconhecerem o preconceito, onde é que ele está, e depois a não o praticar, e a combatê-lo. Isto passa-se também com o racismo, o racismo existe porque não há uma discussão e vai continuar a existir.

Porque a primeira atitude é dizer que não somos um país racista, há uma atitude de negação.

Porque sabemos que o racismo é uma coisa má, que não se deve discriminar uma pessoa e tratar mal uma pessoa baseando-se nos traços físicos ou na cor da pele. E quando se passa deste racismo do quotidiano para um racismo institucionalizado é mais complicado. Por vezes o racismo passa despercebido até porque quem o pratica e por isso é que temos que trabalhá-lo desde muito cedo, o antirracismo. Começa-se agora a falar de linguagem inclusiva, ainda me lembro, em miúda, de dizermos que “o pretinho da Guiné lava a cara com chulé”, quase nem consigo dizer isto hoje em dia sem sentir uma volta no estômago. Mas dizíamos isto com a maior das naturalidades. E é esta naturalidade que vai entranhado a naturalização do preconceito, do racismo.

Que papel é que representa nesta aproximação, ou afastamento do outro, senti-lo como uma ameaça? Um dos receios atuais é de que quando a crise económica começar a bater à porta, há aquela ideia, “vieram para tirar os nossos empregos”. Até que ponto é que essa perceção do outro como ameaça, pode ou não influenciar esse preconceito, também?

Há uma perspetiva que diz que as pessoas, porque se sentem ameaçadas, desenvolvem preconceito. E outra mais recente que diz que a perceção da ameaça é um mecanismo que as pessoas encontram para justificar o seu preconceito. Os ucranianos que vieram para cá eram altamente qualificados, e vieram trabalhar para as obras, para trabalhos menores, serviços de limpeza. Eles não vêm tirar o nosso trabalho, mas é uma maneira socialmente aceitável de justificar porque é que não os quero cá. Se eles forem altos, louros, de olho azul, já não vou dizer que eles vêm tirar o nosso trabalho. Depois vem outra desculpa, a de que o crime aumenta com os imigrantes. Nisto há muita responsabilidade da comunicação social que associa o traço, de imigrante ou da cor da pele, quando um crime é perpetrado por alguém que tem esse traço. Se for um jovem branco é só um jovem, se for negro é um jovem africano, ou é um jovem imigrante, tem logo o rótulo.

 

Quando é comparado com outros países europeus nestas questões da perceção do outro, do eventual preconceito, como é que Portugal se coloca? Vê quem chega como ameaça ou a tendência é para um certo acolhimento?

São coisas diferentes. Há um inquérito europeu, o European Social Survey, que se realiza de dois em dois anos, desde 2002, em vários países europeus. E no período entre 2014 e 2018 Portugal é o país que revela uma maior mudança no sentido da abertura, no conjunto dos 20 e tal, 30 países que respondem ao European Social Survey. Sendo que Portugal é um país com muito poucos imigrantes. Ontem fiz este exercício com os meus alunos e perguntei-lhes quantas pessoas é que achavam que viviam em Portugal e que não nasceram cá, e houve uma [aluna] que disse 25 por cento. São estes valores que a população diz, mas na verdade são sete por cento. Há um desfasamento entre a perceção da realidade e a própria realidade que também faz as pessoas criarem um cenário que não existe.

Em relação à comunidade russa, falando em termos globais, temos assistido a um certo reacender daqueles estereótipos que vimos na Guerra Fria. Em Portugal houve alguns relatos de crianças nas escolas, e falávamos há pouco da importância das escolas e da infância, de isto ser abordado. Mas até restaurantes que fecharam portas com receio de represálias um pouco por todo o mundo. O que é que faz colar a uma comunidade, os atos do líder que a representa?

Há uma coisa que as pessoas têm que separar, uma coisa é o Putin e os seus generais, outra coisa é a população russa. Eles próprios têm mostrado que não estão de acordo com aquilo. É mais uma vez tomar o todo pela característica de uma pessoa, e passam todos a ser vistos como uma ameaça ou como pequenos Putin que andam por aí espalhados. Isto não é um fenómeno novo.

Tivemos recentemente a questão dos atentados e alguma islamofobia. A epidemia também trouxe alguma aversão a tudo o que vinha da China. Temos tendência para colocar logo esses rótulos.

É uma maneira de dizer “isto não tem nada a ver connosco”. Há um responsável e vamos combater o responsável, e isso vai justificar todas as ações que se façam contra aquela comunidade. Responsabilizamos o outro porque o outro vale menos do que nós. Mais uma vez, no processo de categorização, vou hierarquizar e classifico os grupos humanos. Eles não podem mudar de categorias, eu estou numa categoria acima e não posso passar para uma categoria abaixo. Porque isto está na sua essência, se a pessoa nasceu numa categoria de baixo estatuto, ou num grupo humano que é percebido como sendo de baixo estatuto social, ela vai continuar a ser de baixo estatuto social, e isto é uma maneira de eu inferiorizar essa pessoa, de a desumanizar. Foi isso que esteve na base da justificação da escravatura dos negros. E mudar isso leva gerações, leva muito tempo.

Regressando à guerra na Ucrânia, temos assistido ao longo destes últimos tempos a este movimento, à chamada cancel culture, com boicotes culturais, a espetáculos e a concertos, e até a compositores e autores russos. Que sentido é que faz cancelar uma cultura por causa da política de determinada época?

Não faz sentido nenhum. O princípio é o mesmo, pagar o justo pelo pecador. Até percebo que o que é feito lá na Rússia seja para criar pressão na sociedade civil. Outra coisa é, pessoas que não estão na Rússia e que estão a ser “canceladas” pela simples razão de serem russos.

Tendo em conta que a civilização europeia e mundial foi muito influenciada pelos grandes compositores, os grandes autores russos, como é que se pode de repente apagar essa imagem? Entramos numa vaga de cancelamentos de coisas materiais, mas depois passamos para um plano até da imaterialidade das obras de arte, como assistimos nos Estados Unidos, ao derrube de estátuas.

Passamos para o plano simbólico, é transformar qualquer coisa imaterial no meu inimigo, e pensar que ao destruir isto estou a destruir o inimigo. São reações emocionais, vamos ver quanto tempo é que isto dura. Porque a emoção é uma reação imediata, não é como um sentimento, que é uma coisa que se prolonga. Claro que vão continuar as sanções económicas, agora, retirar do dia-a-dia tudo o que é russo, o que é cultura russa, isso não vai ser possível.

 

E até que ponto é que as comunidades russas – no caso português temos assistido a várias figuras da comunidade russa a demarcarem-se das atitudes do governo russo –, podem contribuir para diminuir a tal distância de que falávamos no início. E até que ponto é que isso é importante para reverter esse cancelamento?

É o princípio de que contactar com as pessoas e conhecê-las é uma maneira de diminuir o preconceito. Isso é importante e eles têm que manifestar, não só a sua indignação, como a sua opinião em relação ao que está a acontecer. É importante que as pessoas vejam que isto não é a Rússia, não são os russos que estão a invadir a Ucrânia, é o Putin. E a comunicação social tem que falar desta maneira, este discurso tem que mudar porque depois entra na cabeça das pessoas. Depois dos atentados em Nova Iorque eram os muçulmanos, sobretudo nos Estados Unidos, a ameaça, o início de todos os males. E ainda por cima havia uma excelente justificação, que era a de eles terem práticas e costumes muito diferentes dos nossos, e em relação aos quais sentimos quase aversão. Isso torna mais fácil rejeitar o outro, é um exercício muito difícil tentar compreender. Tivemos um exemplo em Portugal com racismo, que foi o arrastão de Carcavelos, o arrastão de Carcavelos não existiu. Relativamente à islamofobia, em Portugal não está muito estudada. Nos inquéritos que temos feito não há uma rejeição maior de muçulmanos do que de outros grupos. É importante dizer que nos inquéritos, uma coisa é o que as pessoas pensam, outra coisa é o que as pessoas respondem. É a autocensura, não vou confessar que tenho um preconceito relativamente a muçulmanos. Mas as pessoas não têm problema nenhum em manifestar preconceito contra os ciganos, porque é aceite. Não há uma norma na sociedade portuguesa que proteja os ciganos. Não faz mal dizer que os ciganos são uns aldrabões, que são uns criminosos.

Falámos há pouco desta tendência nos vários estudos, de Portugal ser um país com predisposição para acolher e para considerar que devem vir mais pessoas. Nos estudos que têm sido feitos, que fatores podem ou não fazer mudar esta perceção? Ou seja, o nível de desemprego, a situação económica, podem ou não influenciar essa maior ou menor disponibilidade para acolher?

Sim, influencia se os imigrantes estiverem na mesma situação que as pessoas que cá vivem, e se isso for dado a conhecer às pessoas. Os imigrantes têm maior taxa de desemprego do que os portugueses. Se imaginarmos uma situação de crise económica, com taxas de desemprego muito grandes, em empregos de baixo estatuto, que vá absorver imigrantes e que fiquem os portugueses de fora, mas não é isso que tem acontecido.

 

E nesse patamar o discurso político anti-imigração também influencia?

Há estudos que mostram que, independentemente da posição política que a pessoa tem, o facto de existir um discurso anti-imigração institucional faz com que as pessoas sejam mais contra a imigração. A exposição a um discurso de ódio e a um discurso anti-imigrante vai criar nas pessoas uma retração muito grande. Queria dizer outra coisa, o racismo só existe quando estamos a falar de estatuto alto para estatuto baixo. Quando se diz que os negros também são racistas em relação aos brancos, isto não é racismo, podem ter preconceitos. Uma minoria não vai inferiorizar uma maioria. Somos uma sociedade aberta, as coisas estão a melhorar, mas temos que falar das coisas, se não o racismo passa a ser uma coisa que só aparece de vez em quando, porque há um crime, porque há um acontecimento. Passa um tempo e o racismo deixa de existir.

Pode ouvir na íntegra a entrevista dda jornalista Judith Menezes e Sousa à investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no 3º episódio do podcast «O Mundo Que Se Segue

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

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