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O que significa mesmo uma queda de 10% do PIB?

O que significa mesmo uma queda de 10% do PIB?

Artigo de opinião de Frederico Cantante, investigador sobre desigualdades do CoLABOR, do CIES-IUL e do Observatório das Desigualdades.
5 min

Os debates sobre desenvolvimento económico e desigualdade são antigos e plurais. Desde logo, a análise da relação entre o patamar de desenvolvimento dos países e os seus níveis de desigualdade, a de medição e compreensão dos impactos da desigualdade no crescimento económico, a problematização dos efeitos negativos da elevada desigualdade (que tendem a diminuir o bem-estar social potencialmente associado a um determinado rendimento agregado dos países) ou a análise dos principais beneficiários do crescimento económico e dos principais perdedores num contexto de recessão económica. Em relação a esta última questão, sabemos que quem mais beneficiou do crescimento económico das últimas décadas foram os grupos do topo da distribuição do rendimento. Sabemos também que os que mais perderam na anterior crise económica e financeira foram os grupos da base da distribuição. Os proventos do crescimento não são distribuídos democraticamente. A fatura das recessões também não.

O principal indutor de aprofundamento da desigualdade de rendimento em Portugal na anterior crise foi o aumento muito acentuado do desemprego, em particular do desemprego desprotegido. Este mecanismo de aumento da desigualdade está a produzir efeitos também no atual contexto, e a sua magnitude não é até agora superior graças às medidas aprovadas pelo governo para a manutenção do nível de emprego e de apoio financeiro, contributivo e fiscal às empresas. Os trabalhadores por conta de outrem precários, os trabalhadores independentes economicamente dependentes, os microempresários, os mais desqualificados, os trabalhadores das atividades fortemente dependentes do turismo e os das artes e espetáculos têm sido os mais afetados e os que enfrentarão no curto e médio prazo situações de maior carência económica (extrema, em muitos casos). A queda de muitos deles não foi amortecida pela rede de proteção social ou foi-o de forma insuficiente – e com condicionalismos excessivos, em alguns casos. Num contexto recessivo, terão grandes dificuldades em encontrar trabalho.

É necessário assumir que os apoios excecionais às empresas, ao emprego e aos desprotegidos poderão ter uma duração relativamente longa (mais longa do que o ano de 2020), mas é também imprescindível preparar um futuro económico e social mais robusto e equitativo.

O aumento abrupto dos números do desemprego registado e a abrangência do regime simplificado de layoff são tremendos. Tal como é tremenda a pergunta “quantos empregos serão destruídos por uma queda de cerca de 9,5% do PIB?”, valor estimado pelo Banco de Portugal, que pode até pecar por defeito (cenário, aliás, previsto pela instituição).  A correlação entre o aumento do PIB e a criação de emprego pode não ser simétrica à verificada entre a queda do PIB e a destruição de emprego – desde logo, devido ao papel que as políticas públicas podem exercer. Mas façamos um exercício simples (simplista, concedo): entre 2013 e 2019, o PIB cresceu em termos reais cerca de 13,6% (contas a partir de dados da AMECO) e nesse período houve uma criação líquida de emprego de 484 mil indivíduos; assumindo um efeito simétrico (cuja admissibilidade faz sentido tendo em conta que a destruição de emprego e a incidência do layoff estão a ser mais intensas nos setores que suportaram boa parte da criação de emprego entre 2013 e 2019), a queda do PIB de 9,5% implicaria uma destruição de cerca de 340 mil postos de trabalho. Como se referiu atrás, as medidas diretas e indiretas de apoio ao emprego mitigaram o impacto da queda acentuada da atividade económica. Mas essa capacidade é necessariamente limitada, considerando a despesa registada até agora e a projetada até ao final do ano. E o que trará o ano de 2021? Uma recuperação próxima dos 4%, como algumas instituições têm previsto? Essa recuperação será baseada em quê e terá como suporte que alterações do ponto de vista da impermeabilização da vida em sociedade e da atividade económica à COVID-19? 

As respostas são difíceis num contexto de incerteza extrema como é o atual. Mas sabemos algumas coisas: muito dificilmente a criação de emprego no curto e médio prazo poderá ser sustentada nas atividades económicas fortemente dependentes do turismo; e mesmo que tal fosse possível, não seria desejável que acontecesse dada a vulnerabilidade estrutural que esse perfil de especialização implica; é necessário reorientar o perfil de especialização da economia portuguesa e qualificar os atuais e futuros trabalhadores (e empregadores); é fundamental alargar de forma sustentada os mecanismos de proteção social e combater de forma firme as várias formas de precariedade de quem trabalha. Face às incertezas do presente, é necessário assumir que os apoios excecionais às empresas, ao emprego e aos desprotegidos poderão ter uma duração relativamente longa (mais longa do que o ano de 2020), mas é também imprescindível preparar um futuro económico e social mais robusto e equitativo.

Se a desigualdade de rendimento disponível será potenciada pela oposição entre população empregada e desempregada, no caso dos trabalhadores empregados, em particular os assalariados, o recuo do PIB poderá ser acompanhado, no curto prazo, por um nivelamento das retribuições, já que a transição do emprego para o desemprego incidirá sobretudo nos trabalhadores precários e/ou de atividades mais mal remuneradas. O salário médio da base da distribuição tenderá assim a aumentar, favorecendo a redução da desigualdade face à parte superior da distribuição. No entanto, no médio prazo, o exército de reserva de desempregados tenderá a pressionar os salários e a nivelar por baixo as (re)entradas no emprego, potenciando, portanto, o aumento da disparidade salarial. Também por isso é imprescindível conter, tanto quanto possível, o caudal de trabalhadores a transitarem para o desemprego. 

Os efeitos atrás descritos acerca da queda do PIB nos rendimentos poderão ser acompanhados por alterações profundas nos serviços públicos, um canal redistributivo fundamental. Caso a resposta para as dificuldades financeiras que se avizinham passe por cortar despesa na saúde e na educação, então não aprendemos nada com a crise anterior. Nem estamos a aprender com esta.

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