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Cientistas GPS #61: Para sermos justos, não podemos ser imparciais

Entrevista GPS #61: Para sermos justos, não podemos ser imparciais

Entrevista a Diogo Carneiro, doutorando em filosofia política na Universidade de Warwick, no Reino Unido.
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Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

De momento, sou doutorando em filosofia na Universidade de Warwick. Neste contexto estou a desenvolver investigação na área da filosofia moral e política, mais precisamente sobre o significado da objectividade no contexto da justiça social — a justiça referente à (re)distribuição de bens e direitos e às nossas relações sociais. De modo mais específico: comummente, para se definir como justo um juízo e/ou decisão, exige-se que estes sejam objectivos. A minha investigação prende-se com a análise do conceito de objectividade, de modo a que a sua aplicação nos possibilite ser mais justos nos nossos julgamentos e decisões.

Elaborando um pouco mais: na minha investigação proponho que entendamos ‘objectividade’ de uma forma menos ortodoxa. Normalmente, o conceito de objectividade tende a ser interpretado como requerendo imparcialidade — isto é, para sermos objectivos temos que ser imparciais. A ideia de imparcialidade, por sua vez, é defendida como implicado algum grau de distanciamento em relação ao que se quer conhecer, julgar ou decidir sobre. Assim, ser-se justo implica ser-se imparcial e/ou distanciado. Aquilo que proponho, primeiramente, é que ultrapassemos este entendimento de ‘objectividade’, pois, caso entendamos objectividade como imparcialidade/distanciamento, não teremos acesso a toda a informação relevante para podermos julgar ou decidir convenientemente sobre os outros — o distanciamento não parece permitir que conheçamos ao pormenor a informação subjectiva e pessoal necessária para a formulação fundamentada de juízos e decisões. Deste modo, e paradoxalmente, a concepção tradicional de objectividade acaba por conduzir a uma perda de objectividade e, consequentemente, fragiliza a possibilidade da justiça. A alternativa que proponho é que entendamos objectividade como intersubjectividade: neste contexto, isto significa que para sermos objectivos devemos procurar uma aproximação ao sujeito (e não um distanciamento), de modo a termos acesso à máxima informação possível — informação necessária para a formulação de juízos e para a tomada de decisões que possamos considerar justos.

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

Quando digo que faço investigação em filosofia, a reacção de um grande número de pessoas é perguntar “mas isso serve para quê?”. Ainda que, à partida, a filosofia possa parecer apenas uma forma de algumas pessoas se entreterem a ler e a pensar sobre assuntos que têm pouca importância para o nosso dia-a-dia, podemos usar a minha resposta anterior como um exemplo de como a filosofia nos permite questionar e repensar a forma como vivemos e como queremos viver uns com os outros. Se, de facto, empregarmos o termo ‘objectivo’ de um modo que nos leve a decisões injustas — e se acreditamos que a justiça das nossas sociedades é importante —, então, será através da análise de conceitos como estes que poderemos corrigir o que consideramos errado nas nossas sociedades, assim como tentar minimizar algum do sofrimento da existência humana. Para mim, é particularmente motivante poder desenvolver investigação que possa ter, eventualmente, algum impacto na forma como pensamos as nossas vidas colectivas.

Na realidade académica que encontrei, existe uma grande abertura, uma constante disponibilidade e relação muito próxima entre alunos e professores e entre pares.

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

O principal motivo para decidir fazer investigação no estrangeiro — e em Inglaterra especificamente — está relacionado com o nível da investigação, dos investigadores e da reputação internacional da universidade em que me encontro. As condições para se desenvolver investigação em Portugal ou na Inglaterra são desiguais, tendo em conta a diferença de recursos entre as universidades dos dois países — sobretudo na área da filosofia.

Adicionalmente, na realidade académica que encontrei, existe uma grande abertura, uma constante disponibilidade e relação muito próxima entre alunos (de todos os graus) e professores (desde tutores a professores catedráticos) e entre pares (professores e investigadores). Encontrei também uma realidade onde se dá uma menor importância à carga horária atribuída aos alunos, existindo, em compensação, uma maior preocupação com o desenvolvimento de ferramentas analíticas – os alunos são vastamente incentivados a desenvolver uma perspectiva crítica própria perante os tópicos discutidos nas disciplinas —, em vez da imposição de extensas listas de autores. 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

Não podendo ser exaustivo, deixo uma nota referente a um dos desafios que o panorama científico português parece enfrentar. A investigação, em Portugal, nomeadamente em filosofia, está a sofrer de um grave constrangimento linguístico: isto é, de modo a desenvolver investigação que almeje reputação internacional, no contexto do paradigma anglo-americano dominante, a investigação é condicionada a ser feita e publicada em inglês. Como resultado, começamos a ver as universidades portuguesas a desvalorizarem a língua portuguesa e a tornarem-se subservientes à língua inglesa.

O uso dominante do inglês, na investigação, potencializa uma uniformização do pensamento. Isto é, não sendo possível desligar o pensamento da linguagem (e vice-versa), cada língua e cultura desenvolve naturalmente formas diferentes de pensar. Deixar de pensar e investigar em português elimina um conjunto de ideias e de possibilidades de investigação. Ao uniformizarmos o discurso do conhecimento em inglês, o conhecimento que poderia resultar da especificidade do pensamento em língua portuguesa tenderá a fragilizar-se; assim, aquilo que supostamente facilitaria a investigação portuguesa a atingir reputação internacional não o fará de forma substancial, na medida em que acabaremos por perder um dos factores que nos poderia distinguir em termos de contributos de investigação — a nossa língua e cultura.

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

Penso que o GPS representa um projecto de grande interesse: por um lado, permite que investigadores nas mesmas áreas possam tomar conhecimento da investigação que os seus pares portugueses estão a desenvolver — o que poderá abrir portas a interessantes colaborações; por outro lado, permite o encontro de investigadores de diferentes áreas para colaborações interdisciplinares, essenciais para a expansão do conhecimento para outras e novas áreas de interesse. Por fim, o GPS representa a possibilidade de congregar todo o conhecimento que é feito por portugueses, dando uma representação mais fiel do panorama científico português.

Consulte o perfil de Diogo Carneiro no GPS-Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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Portuguese, Portugal