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Passos Perdidos na Cidade Suspensa

Passos Perdidos na Cidade Suspensa

Prefácio do livro «Cidade Suspensa: Lisboa em Estado de Emergência», com textos de Bruno Vieira Amaral e fotografiam
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Albert Camus escreveu em A Peste que uma «maneira cómoda de travar conhecimento com uma cidade é descobrir como lá se trabalha, como se ama e como se morre». Hoje sabemos que, numa cidade sitiada pela doença, trabalha-se, ama-se e morre-se de maneira diferente. Só não sabemos como. As regras impostas pelas autoridades de saúde reduzem o espaço público – dividido entre lugares seguros e inseguros, entre lugares frequentáveis e lugares proibidos – e reorganizam o tempo, com alterações e limitações aos horários, definição de períodos máximos para cada atividade.

Todas as tragédias interrompem, desde logo, o fluxo do tempo, rasgam-no, mutilam-no. São linhas que dividem o tempo entre um antes e um depois. As vítimas – seja a tragédia pessoal ou coletiva – não conseguem retomar de imediato a vida normal. Precisam de se recompor, precisam de reparar a costura que as une ao tempo. Nas grandes catástrofes, naturais, como um terramoto ou um tsunami, ou obra de mão humana, como as guerras, além do tempo, também o espaço sofre uma transformação violenta.

A particularidade de um fenómeno como a pandemia – esta pandemia – é que corrói, sobretudo, o tecido do tempo e deixa o espaço aparentemente, estranhamente, intacto. Uma cidade deserta, mas intacta, é uma cidade em ruínas invisíveis, minada por um mal interior. É a mesma e é outra, como uma pessoa que subitamente perdesse a voz ou o controlo dos músculos faciais. Como poderia uma pessoa comunicar em semelhantes condições?

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Da mesma forma, o que nos poderá dizer uma cidade paralisada, envolta numa estranha quietude? Mais nítida e aberta do que nunca, é como se estivesse fechada, coberta por uma neblina densa.

Em tempos normais, o ruído e o movimento cobrem os luga­res. No meio da multidão, nunca os vemos. Vazias, as ruas têm uma nova e ambígua eloquência, uma nudez e mudez indecifrá­veis. Cada prédio, árvore, passeio, é um símbolo, um hieróglifo, de uma língua que ainda não conhecemos. Pressentimos em cada imagem um significado oculto porque o vazio nos é intolerável. Percebemos que, arrimados à bengala da presença humana, não demos atenção à cidade, que nunca a observámos. Agora exigimos que fale connosco, que nos entregue o seu mistério. Que história tens para nos contar? Diz-nos, através do teu silêncio árido, como se trabalha, como se ama e como se morre aqui.

Vazia, ou despida, de seres humanos, cujos rastos invisíveis conferem sentido ao espaço, a cidade transforma-se num tabu­leiro de xadrez em que todas as casas têm a mesma cor, pretas ou brancas, e em que as peças que sobram, dois ou três peões, podem imaginar-se reis, rainhas, torres, bispos, cavalos. Sem pessoas, somos obrigados a procurar o sentido no esqueleto da cidade, na sua arquitetura, no traçado das ruas, agora labirinto e enigma. O vazio torna tudo mais expressivo, porém incom­preensível. Os edifícios, mesmo os mais modestos, adquirem uma outra monumentalidade. As ruas, as praças, os largos, outrora meros lugares de passagem, borbulham de segredos e de misté­rios escondidos à vista de toda a gente. Tudo o que julgávamos compreender é agora uma enorme interrogação.

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Na vida quotidiana, as pessoas dentro do tempo são o fio de Ariadne, que nos permite circular pela cidade às cegas sem nunca nos perdermos – e sem nunca a vermos. Cortado o fio, abrimos os olhos e somos tentados a atribuir significados para atenuar o sentimento de desorientação. Cortado o fio, a cidade reduz-se, pelo menos durante algumas semanas, a um espaço imenso e sem coordenadas, tão vasto e ameaçador como os mares e os desertos.

Observe-se um homem a caminhar nesta nova cidade, uma cidade que ele, na verdade, não conhece. Cada passo que dá tem um outro peso, uma outra intenção. É como se desbravasse novos territórios, não para os conquistar, mas para ser transformado por eles, como um peregrino é transformado pelo deserto. Uma cidade vazia é um deserto com prédios, e o deserto, espaço branco e ter­rível, fala de muitas maneiras aos que dele ousam aproximar-se, aos que se atrevem a sondar o seu mistério. Vazia, a cidade, centro irradiador de cultura e coio do vício, farol da civilização e albergue das sombras privadas, pode ser tão misteriosa e enigmática quanto o deserto, lugar da transformação por excelência.

A cidade suspensa é um lugar perigoso cujos perigos não reconhecemos nem podemos avaliar. Em tempos normais, as pes­soas dobram as esquinas e prosseguem as suas vidas. Em tempos de pandemia, as esquinas ameaçam devorar quem delas se aproxima. Quem dobra uma esquina, quem atravessa uma rua, quem entra num edifício, arrisca-se a desaparecer para sempre, como um vele­jador solitário tragado pelas ondas, um peregrino engolido pelas areias, porque é agora um pequeno ponto perdido no espaço, uma criatura frágil à mercê dos elementos.

A cidade suspensa e vazia perturba, pois está povoada dos homens que devorou, dos fantasmas dos desaparecidos. Fantasmas que, na nova cidade revelada pela pandemia, somos todos nós, à procura do nosso espaço, do nosso tempo. Quando os encontrar­mos, saberemos outra vez como nela se trabalha, como se ama e como se morre.

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