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Cientistas GPS #58: «O sistema científico português é fechado, endogâmico e piramidal»

Entrevista GPS #58: «O sistema científico português é fechado, endogâmico e piramidal»

Entrevista a Hugo Cardoso, professor e investigador de arqueologia na Simon Fraser University, no Canadá.
8 min
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Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

A disciplina em que trabalho é a antropologia biológica ou o estudo do homem de uma perspectiva integral, com um entendimento geral dos fenómenos da biologia humana e na interrelação dessa biologia com o ambiente físico e sociocultural, passado e presente. Mais concretamente, sou um especialista no esqueleto humano e fui treinado para procurar e utilizar a informação contida nos ossos e nos dentes – independentemente de terem meio milhão de anos ou serem actuais – que permite esclarecer aspectos sobre a vida e a morte dos indivíduos e das populações no passado antigo ou recente. No caso do passado antigo, essas competências permitem, por exemplo, reconhecer fósseis como sendo anatomicamente modernos ou desvendar o impacto da ocupação islâmica na saúde e bem-estar das populações através do exame de restos humanos arqueológicos. No passado recente os mesmos conhecimentos têm sido aplicados em exames médico-legais, permitindo identificar e esclarecer as circunstâncias da morte de restos humanos não identificados.

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

Sempre me fascinou a história evolutiva do homem, o significado e história da nossa presença no planeta Terra, o mistério de momentos e tempos passados e como esses momentos não estão mais – em princípio – ao nosso alcance, e a forma como o esqueleto humano - efectivamente os restos físicos directos de quem viveu e morreu no passado - pode ajudar a esclarecer tantas dessas questões e ao mesmo tempo pode gerar novas e fascinantes perguntas. Como antropólogo, o que procuro fazer é desvendar e dar significado a eventos que passaram, que estao no passado, e aos quais apenas temos acesso através dos vestígios que chegaram até nós. Para isso utilizo o esqueleto como evidência e fonte de informação. Tenho passado muito tempo a reflectir sobre a fiabilidade das metodologias que temos disponíveis para desvendar essa informação, bem como a desenvolver novas técnicas nesse sentido.

Contudo, mais recentemente, no meu trabalho em contexto arqueológico venho procurando dar voz a grupos que são tipicamente invisíveis, quer porque não existam documentos escritos sobre esses indivíduos ou populações, quer porque são grupos normalmente marginalizados pela sociedade da epoca ou até mesmo pelos cientistas modernos – como é o caso das crianças ou dos mais desfavorecidos. Também me motiva poder examinar o impacto das desigualdades sociais e de transições culturais, sociais e políticas na vida das comunidades do passado, pois muitas das questões são ainda relevantes para a nossa compreensão do mundo actual e futuro. Para além disso, penso que o meu trabalho contribui de forma importante para a construção e valorizacao da identidade das comunidades locais através do estudo do seu património arqueológico. Motiva-me ainda que parte do meu trabalho em contexto forense tenha um impacto social significativo ao devolver a identidade a pessoas ou vítimas desaparecidas, permitindo o luto das familias, e ajudar à aplicação da justica em casos de homicídio e violação de direitos humanos, por exemplo. Também considero importante o meu papel enquanto académico e educador, na desconstrução e critica de noções desactualizadas de biologia humana e variedade biológica humana que perpetuam a discriminação e o racismo entre povos, contribuindo assim para um maior respeito pelos direitos humanos.

O sistema [científico português] é fechado, excessivamente endogâmico e fortemente piramidal.

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

O meu primeiro período no estrangeiro foi entre 2001 e 2005 para fazer o doutoramento. Tive incentivo importante em Portugal para dar o pontapé de partida, incluindo uma bolsa da FCT a partir do segundo ano – pela qual estou muito agradecido -, mas depois a jornada foi inteiramente minha. Fui para a McMaster University na cidade de Hamilton, na província do Ontario, Canada, onde encontrei um espírito academico muito aberto e igualitário, oferecendo um leque variado de experiências, com muito apoio e reconhecedor do meu trabalho, mas também um local bastante íntegro e competitivo. Depois decidi ficar em Portugal, motivado pela possibilidade de retribuir o investimento que foi feito em mim pelo Estado e poder contribuir para o crescimento e competitividade do sistema científico nacional. Infelizmente foi pura ilusão e a partir de 2010 comecei a procurar oportunidades fora do país.

Acabei por voltar ao Canadá – agora em Vancouver, na Columbia Britânica – em 2013. A minha segunda jornada aqui começou com um contrato a termo de 3 anos, depois contrato sem termo numa posição tenure-track, e neste momento sou Professor Associado com tenure. Por comparação com Portugal, aqui existem políticas claras de investigação e as universidades valorizam a investigação dos seus docentes. O sistema também é muito mais igualitário e sustentado no mérito, retirando muitas barreiras informais à investigação, decorrentes de hierarquias inoperantes e rígidas intra-departamentais e intra-universitárias. Os meios disponíveis para fazer investigação também estão mais disponíveis, não necessariamente porque existem mais meios, mas porque são muito mais eficientemente utilizados. Por exemplo, em Portugal conheço gabinetes de docentes/investigadores universitários que são equiparáveis aos de um presidente de uma faculdade ou reitor aqui na minha universidade. Este é reflexo também do país que temos, não esquecendo que Portugal tem problemas estruturais importantes e onde os fundos públicos são sistematicamente mal utilizados ou estão muitas vezes sujeitos ao saque descontrolado.

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

Quero reconhecer, em primeiro lugar, que existe excelente investigação e excelentes investigadores em Portugal, que trabalham em condições bastante adversas. Contudo, vou concentrar-me nos aspectos negativos do sistema científico portugues. Na generalidade, os investigadores em Portugal nao vêem o seu mérito reconhecido nem recompensado, por causa de uma sistema que premeia o subserviência e que sofre de problemas graves e crónicos relativamente à falta de uma política de financiamento e de uma estratégia sólida de I&D ao nivel nacional e institucional. Durante alguns anos existiu um sistema fundamentado nos subsídios europeus a que agora o Orçamento de Estado e a vontade política não querem dar continuidade. É inacreditável a precaridade dos cientistas e bolseiros em Portugal. As promessas sao imensas e nada se concretiza. Não existe uma real vontade para mudar o estado das coisas. Os programas de contratação/inserção dos doutorados foram uma boa iniciativa, mas não percebo porque acabaram com as bolsas de pós-doutoramento. As versões mais recentes destes programas parece-me que pecam por estarem sobretudo direccionadas para recém-doutorados, deixando uma boa parte dos investigadores mais séniores de fora e criando desigualdades importantes entre gerações. Sem estratégia não se sabe se os programas vão ter continuidade, criando mais problemas de desigualdade futura.

Não concordo com estes programas como única forma de resolver os problemas do emprego científico e da ciência em Portugal. Antes pelo contrário, no longo prazo parece-me que isso tem de passar pela inserção da maior parte dos investigadores numa carreira docente e de investigação universitária e de reforço do sistema científico instalado. As nossas universidade têm muito mais a beneficiar dessa forma, mas o problema é que o sistema é fechado, excessivamente endogâmico – acho inacreditável existerem reitores que fizeram toda a sua formação e toda a sua carreira na mesma universidade que presidem - e fortemente piramidal, onde existe uma certa noção generalizada de privilégio, propriedade e autoridade da geração sénior que detém o poder, com vista à reprodução de um sistema que torna a investigação muitas vezes relativamente medíocre, valorizando a subserviência dos indivíduos em detrimento do mérito, como forma de manter uma larga maioria na base da estrutura e totalmente dependente do topo. Esta estrutura fortemente piramidal cria problemas de poder concentrado e dificuldade de acesso a oportunidades pelos mais jovens, que ficam dependentes da vontade e discrição dos mais séniores. Há uma incompetência, incapacidade e inveja generalizada e instalada que se perpetua nas relações de compadrio, autoridade, submissão e bajulação.

Além do mais, Portugal é também um país pequeno, como uma comunidade científica pequena, onde as rivalidades facilmente emergem. A competição científica é fortemente personalizada e há uma desconfiança generalizada relativamente à diferença de opinião e à contestação. Esta personalização dos conflitos é reflexo da estrutura piramidal e da subserviência, num sistema em que há competição pela atenção dos que detém o poder. O sistema de centros de investigação (inter-universitários) e seu financiamento também me parece desadequado, pois não permite as universidade investirem e valorizarem os seus investigadores e docentes. Isso dificulta, parece-me, a definição de estratégias de investigação, acção social e envolvimento com a comunidade, por exemplo, das universidades e da competição saudável que deve existir entre elas.

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

Confesso que não tenho acompanhado os desenvolvimentos recentes, mas lembro-me de quando o projecto foi criado. Acho muito importante reconhecer a diversidade e impacto dos cientistas portugueses além fronteiras. Como forma de reconhecimento – que me parece importante – mas também como forma de documentação, para que os decisores e os responsáveis pelo sistema científico português percebam, pela quantificação do fenómeno, o quanto Portugal está a perder – mas por outro lado, e por consequência, o quando Portugal está tambem a dar ao mundo. Talvez o futuro reconheça Portugal como um altruista da ciência mundial!

Consulte o perfil de Hugo Cardoso no GPS-Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Autor
Portuguese, Portugal