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Protesto e democracia em Portugal

Artigo de opinião de Tiago Carvalho, investigador na Scuola Normale Superiore, em Itália.
3 min

A crise economíca e financeira iniciada em 2008, e as medidas de austeridade seguidas, tiveram consequências económicas e políticas. A vaga de protesto e transformação política que assolou o sul da Europa reconfigurou os seus sistemas políticos, não tendo Portugal sido uma excepção. Contudo, ainda que haja tendências que são comuns a vários países, as diferenças entre estes resultam também das configurações dos seus sistemas políticos. Nos países do sul da Europa assistiu-se a movimentos de protesto que contestaram não só as medidas de austeridade como as ligaram a défices de natureza democrática. 

No que diz respeito a Portugal, a contestação à austeridade foi levada a cabo por três tipos de actores distintos. Em primeiro lugar, por movimentos de protesto da sociedade civil que se caracterizaram por mobilizações esporádicas mas explosivas que levaram um número significativo de pessoas à rua. Em segundo lugar, organizações sindicais que levaram a cabo acções constantes de dimensão variada. Finalmente, a contestação teve também expressão institucional entre os partidos da esquerda, que contestaram a austeridade quer na rua quer no Parlamento.

Nos países do sul da Europa assistiu-se a movimentos de protesto que contestaram não só as medidas de austeridade como as ligaram a défices de natureza democrática.

É importante notar que ao contrário do que aconteceu em Espanha, por exemplo, estes actores não levaram a cabo a construção de um discurso alternativo que abrisse o espaço para a formação de um novo partido. Se em Espanha os movimentos de rua ligaram as origens do regime democrático, os actores-chave e as políticas de austeridade seguidas, em Portugal a contestação visou antes a manutenção do modelo social visto como um legado do 25 de Abril. Assim, se em Espanha o “regime” foi desafiado pelos movimentos de protesto, em Portugal os vários actores supracitados defenderam-no. Por esta razão em Portugal, ao contrário de outros países, as reivindicações para o aprofundamento democrático nunca foram dominantes. Pelo contrário, a maioria das reivindicações centrou-se nos direitos sociais e na manutenção dos legados do 25 de Abril, vistos por todos os actores como centrais na forma como a democracia foi construída em Portugal. Por esta razão, nunca se abriu o espaço para a construção de uma alternativa política aos actores existentes, já que em grande medida estes canalizaram a insatisfação existente - sendo a actual solução governativa resultado desse processo.

Os domínios da sociologia e ciência política têm vindo a demonstrar nos últimos 60 anos que mais do que uma expressão de insatisfação ou desordem, o protesto tem uma leitura e raízes políticas. O seu estudo permite iluminar arranjos políticos mais amplos, sendo central para os processos de mudança políticos em democracia. Deste modo, o ciclo de protesto que se desenvolveu em Portugal durante a austeridade revela quais os actores e temas relevantes na democracia portuguesa. Para um melhor entendimento da relação entre protesto e democracia em Portugal seria importante fazer um estudo histórico da relação deste com o sistema político, ligando e reconstituindo diferentes ciclos de protesto desde 1974 para entender quais são os actores e temas dominantes.

Tiago Carvalho, doutorado em Sociologia pela Universidade de Cambridge com uma tese sobre o ciclo de protesto anti-austeridade em Portugal e Espanha, é actualmente investigador do Departamento de Ciências Políticas e Sociais da Scuola Normale Superiore em Itália. Veja o perfil de Tiago Carvalho no GPS-Global Portuguese Scientists.

Fotografia de Dean Moriarty no Pixabay.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal