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Seca em Portugal: resposta tradicional e novos desafios

Artigo de opinião de José Gomes Ferreira, professor visitante no Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil.
3 min
É reconhecido que a seca que historicamente caracteriza o período estival em Portugal não é apenas um fenómeno climático, possui elementos sociais e simbólicos que importa reconhecer e considerar.

No passado a resolução dos conflitos pelo acesso à água em situações de escassez dependia de tradicionais dispositivos de governança comunitária que resultavam na partilha entre os proprietários. Estes, de forma proporcional à dimensão das propriedades, recebiam o equivalente em horas ou dias de acesso à água de um poço ou represa.

Nas últimas décadas, a possibilidade de acesso a mais e melhor informação, por vezes em tempo real, teve um efeito positivo na gestão dos recursos hídricos. Porém, a predominância da leitura técnica do fenómeno reduziu a seca à capacidade de armazenamento das grandes barragens, sem monitorizar a pequena escala e sem levar em conta as dinâmicas sócio-climáticas das comunidades, as chamadas culturas da água, e sem um diagnóstico com possíveis efeitos conjugados na origem da seca.

A criação de perímetros de rega e a intensificação da agricultura com objetivos de mercado trouxeram novas articulações e maiores necessidades de água. Inversamente, o abandono dos campos não se refletiu apenas em termos demográficos, constitui um momento de ruptura na produção induzida de água através da vegetação e do cuidado na preservação de nascentes usadas para abastecimento de água e reprodução de saberes ancestrais. Como agravante, a política florestal aposta desde meados da década de 1950 em árvores de crescimento rápido e de maior valor económico, sem uma preocupação ecossistémica e que funcione como barreira às variações climáticas e agressões humanas. Os incêndios florestais ampliaram o problema ao destruírem nascentes, consumirem muita água e gerarem poluição.

Por outro lado, a gestão fronteiriça da água deixa Portugal dependente da boa vontade espanhola. Um problema que se agrava com uma crise climática sem precedentes e para a qual será necessário encontrar soluções bilaterais e no quadro da União Europeia. Se os transvases e a agricultura intensiva praticada em Espanha esvaziam e poluem os nossos rios, a seca deixou de ser um acontecimento localizado e sazonal, ocorre em qualquer lugar e sem meses definidos, altera a disponibilidade de água e regista um forte impacto no ciclo das sementeiras e colheitas, que obriga a repensar quais as melhores áreas de cultivo e as culturas mais adequadas.

Também internamente precisamos de repensar o que fazemos. Não só afastamos as pessoas das origens de água como vamos buscá-la a pontos mais distantes. Não admitimos, mas recorremos a pequenos transvases para abastecer cidades, vilas e aldeias com capacidade de captação e geração de água. Retiramos água de áreas não necessariamente excedentárias para outras com água e sem que nada se faça no sentido de reutilizar as águas residuais tratadas ou captar a água da chuva. Ou seja, reduzimos a água disponível e geramos maior procura.

A resposta de emergência tem conseguido rechaçar o problema, mas com elevados custos e sem uma visão de longo prazo que confronte vários cenários de agravamento. Precisamos de projectar cidades e áreas rurais mais resilientes à ausência prolongada de precipitação, através da criação de infra-estruturas de baixa densidade para armazenamento, da redução do consumo de água e do fortalecimento dos ecossistemas hídricos. As águas subterrâneas constituem um recurso estratégico em cenários de escassez prolongada de água. Deve igualmente ser dada prioridade ao abastecimento de comunidades social e ambientalmente mais vulneráveis e a processos de governança inovadores e inclusivos.

José Gomes Ferreira é professor visitante no Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Veja o seu perfil no GPS-Global Portuguese Scientists.

Fotografia de Erda Estremera no site Unsplash.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal