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Uma cortina para derrubar um muro

Começaram a ser usadas pela primeira vez em 1952, mas apenas nos anos de 1970 se tornaram uma prática comum. As «audições às cegas» acontecem por detrás de um pano ou de uma tela porque aquilo que interessa é ouvir a música, mais do que saber qual o sexo ou a cor da pele. Leia este artigo publicado originalmente na edição n.º 8 da Revista XXI.
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O que têm em comum um concurso televisivo como o The Voice e a Orquestra Gulbenkian? Ambos fazem uso das chamadas «audições às cegas» ou blind auditions. As audições às cegas são um procedimento usado na selecção de candidatos que pretende esconder a identidade do  concorrente. A ideia é que, através deste método, usado numa ou em várias fases da selecção, o júri não possa ver o aspecto físico do candidato, podendo concentrar-se na escuta musical, de forma a mitigar os aspectos exteriores às capacidades técnicas audíveis e propriamente musicais na avaliação da qualidade artística da performance. No concurso televisivo, os elementos do júri estão de costas e podem virar-se quando um deles aceita integrar o concorrente na sua equipa, carregando num botão. Este girar de cadeira tem um simples motivo espectacular, para aumentar o suspense no programa, mas tem por vezes surpresas que têm a ver com a identificação de género: “Ah! É um homem. Mas com esta voz?!” Nas blind auditions para seleccionar novos candidatos a integrar uma orquestra, os músicos tocam atrás de um pano, um painel ou uma tela. Algumas instituições chegam mesmo a usar um tapete de forma a impedir o reconhecimento auditivo do calçado, que poderia denunciar por exemplo... uns saltos altos.

As audições às cegas começaram a ser usadas pela primeira vez pela Boston Symphony Orchestra em 1952, mas só a partir dos anos 70 a prática se estendeu a outras orquestras. A ideia era impedir escolhas tendenciosas com base no aspecto exterior da pessoa que concorre ao lugar. O processo mitigaria assim escolhas baseadas ou influenciadas por aspectos como a cor da pele ou o género, mas também a origem escolar dos candidatos e o seu possível reconhecimento, por exemplo, por ter pertencido a outra orquestra concorrente. A ideia seria aumentar a justiça das escolhas, garantindo (ou pelo menos favorecendo) condições de igualdade à partida. Mas por que não estariam essas condições  garantidas à partida? Não bastariam as aptidões musicais e as capacidades técnicas previstas na avaliação e as peças obrigatórias previstas no regulamento para garantir igualdade e justiça nas escolhas dos candidatos, confiando na honestidade e idoneidade do júri?

Na primeira metade do século XX, as grandes orquestras de todo o mundo eram, com poucas excepções, compostas quase exclusivamente por homens. Em raros casos, o número de mulheres chegava aos 5% no total dos intérpretes de uma orquestra sinfónica com cerca de 100 elementos. Não será preciso invocar uma longa tradição patriarcal, séculos de diferenciação e inferiorização com base no sexo, e toda uma história da dominação masculina para perceber que o mundo musical não era excepção na exclusão das mulheres. No pós-guerra, essa situação escandalosa começava lentamente a mudar. A responsabilidade histórica desta mudança não pode ser atribuída, evidentemente, a iniciativas isoladas e incipientes como a da Sinfónica de Boston. Outros factores agiram, e alguns são bem conhecidos: a feminização do trabalho (com a importância dramática e contraditória das guerras mundiais), a entrada das mulheres em alguns campos de actividade tradicionalmente reservados aos homens, grandes transformações na educação nalguns países, igualdade política, direito ao voto, direito ao divórcio, lutas por direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Tudo isto não veio de uma vez só (em Portugal só com a revolução de 1974 as mulheres adquiriram alguns destes direitos fundamentais, como sabemos), e é ainda um processo de emancipação incompleto e constantemente ameaçado pela persistência do sexismo à escala global.

Ao mesmo tempo, o movimento feminista afirmou-se no campo social e na produção teórica como nunca antes, e ganhou algumas batalhas. O machismo, entretanto, perdurou e perdura. E a dominação masculina (para usar a expressão do sociólogo Pierre Bourdieu) subsistiu no público e no privado, no trabalho e na vida, na divisão sexual da produção. Na Família, no Estado, na Escola, três das principais instituições responsáveis pela reprodução da dominação de género. Mas a possibilidade de as mulheres estudarem mais nalguns países (chegando em massa ao ensino secundário e superior) fez muita diferença, e também na música: milhares de mulheres puderam (a pouco e pouco) tornar-se maestrinas,  compositoras, tocar trompa e não apenas harpa, aquele instrumento «tipicamente feminino».

Sexismo subtil

Em Portugal, não foi fácil para mulheres como Berta Alves de Sousa, Maria de Lourdes Martins, Francine Benoît ou Clotilde Rosa afirmarem-se como compositoras. Guilhermina Suggia, grande violoncelista portuguesa, era elogiada em 1902 por um dos seus professores alemães nestes termos: «nada tem a recear no confronto com os seus colegas do sexo masculino». Era preciso descansar os pais e continuar a provar que ela não era menos do que nenhum homem, mesmo quando já era considerada «uma celebridade». Para outras intérpretes de carreira pairava sempre a pergunta: «Então e a vida familiar, a que a mulher se deve dedicar?» Está em causa, sempre, o “devido lugar das mulheres”.

De qualquer forma, foi o século XX que viu caírem alguns dos muros que mantinham as mulheres músicas afastadas da vida pública e da performance ao lado dos homens. Preconceitos derrubados? Nada disso. Em 1970 o maestro Zubin Mehta, que dirigia na época a Los Angeles Philharmonic era ainda capaz de dizer ao The New York Times, com todas as letras: «Não acho que as mulheres devam tocar numa orquestra. Elas tornam-se homens. E os homens tratam-nas como iguais. Até mudam as calças à frente delas. É terrível!»

O machismo declarado ou o sexismo subtil persistem ainda hoje, apesar de todas as transformações no sentido de uma maior igualdade entre homens e mulheres.  Encontramos, apesar de tudo, em muitas grandes orquestras mundiais, mulheres que tocam contrabaixo, trombone, trompa ou tuba, instrumentos em que é muito mais raro encontrar instrumentistas do sexo feminino. Se nas cordas (com excepção do contrabaixo) a igualdade parece já não encontrar freios nem grandes preconceitos, e nas madeiras há até posições ocupadas maioritariamente por mulheres (as flautas seriam um bom exemplo), os metais e as percussões continuam a ser instrumentos com poucas mulheres. A transformação no campo educativo foi (e cremos que é ainda) decisiva para esta mudança, que continua a ter de quebrar as «linhas de demarcação místicas» de que falava Virginia Woolf num ensaio de 1938, Three Guineas, onde desenvolve algumas das ideias lançadas nas conferências reunidas em Um quarto que seja seu (A Room of One’s Own), texto brilhante e famoso – com força de manifesto – contra a menorização e a subalternização das mulheres. Woolf  imaginava também uma instituição escolar bem diferente, que ultrapassasse essas «linhas de demarcação» historicamente inventadas e pudesse ensinar «a arte de compreender as vidas e os pensamentos dos outros», em vez de servir apenas para a reprodução dos preconceitos e dos dados viciados que tornam «naturais» as construções históricas que colocaram jugos sobre as mulheres, bem difíceis de tirar do corpo e da cabeça.

O problema que as audições às cegas tentam contribuir para solucionar não é fácil de enfrentar. Porque o preconceito nem sempre se exprime deliberadamente (à maneira do machismo radical de Zubin Mehta) e a naturalização de acções aparentemente livres pode esconder escolhas tendenciosas (biased, como se diz em inglês), mesmo que o júri não seja composto por marialvas.

Feminização das orquestras

Malcolm Gladwell, no livro Blink, em que analisa e tenta desconstruir as enganosas «impressões à primeira vista», dá o exemplo de uma  instrumentista, mulher e de pequena estatura, que «nunca poderia ser uma grande tocadora de trompa porque não teria força nem capacidade pulmonar”».

Ora esta mulher, Julie Landsman, é hoje trompista solista e líder do naipe da Metropolitan Opera de Nova Iorque. Ela própria conta ter estado em muitas audições «sem tela e ter percebido que era prejudicada pelo preconceito. Outra colega sua, Sarah Willis, primeira trompa na Filarmónica de Berlim, conta a curiosa história do seu início na escola: o professor sugeriu a flauta, a harpa... O pai de Sarah disse logo: «Harpa não, que é muito cara e muito pesada para transportar.» O professor retorquiu: «Bom, também temos a trompa, mas isso não é para ti, é para rapazes.» Sarah rematou: «É mesmo isso que eu quero tocar». O preconceito esconde-se, disfarça-se de normalidade, e até as próprias mulheres podem reproduzi-lo, como qualquer dominado pode reproduzir a ideologia que mantém a sua dominação, naturalizando-o e essencializando-o («é mesmo assim, as mulheres são isto, os homens aquilo»). 

 

Uma Cortina Para Derrubar Um Muro
Mariss Jansons conduz a Orquestra Filarmónica de Viena, que só admitiu a presença de mulheres em 1997.

Um estudo extremamente interessante de Claudia Goldin e Cecilia Rouse, publicado em 1997 pelo National Bureau of Economic Research, mostrou «a partir de dados sobre os músicos das orquestras, que a mudança para audições às cegas pode explicar entre 25% e 46% do aumento na percentagem de elementos femininos nas orquestras desde 1970». As mulheres instrumentistas que fizeram audições atrás da cortina tinham, segundo este estudo, mais 50% de possibilidades de chegarem à fase final e serem seleccionadas. 

O estudo reportava-se a algumas das mais importantes orquestras dos EUA, no período entre 1970 e 1995, e dava conta de um salto gigantesco na contratação de mulheres pelas grandes orquestras. A composição das orquestras passou de 10% de mulheres em 1970 a 35% em meados dos anos 90. Embora as autoras reconheçam que este salto não pode ser apenas atribuído à utilização deste tipo de método, sublinham no estudo, a partir de informação muito detalhada e bem verificada, que a contribuição das blind auditions é inegável na mudança verificada na feminização das orquestras norte-americanas. Faltariam estudos semelhantes para perceber se outros factores, como a idade, a classe social, a cor da pele ou a “etnicidade” dos músicos não serão parte dos preconceitos incorporados no mundo da música e se não continuam a impedir (ou pelo menos, a dificultar) o acesso às orquestras mundiais de todos os que não são homens brancos com determinado perfil e currículo.

Apenas seis mulheres na Filarmónica de Viena

Um caso chocante é o da Filarmónica de Viena, cuja direcção e membros defendem abertamente posições racistas e sexistas. Num artigo de William Osborne (Blind Auditions and Moral Myopia), publicado num blogue em fins dos anos 90, o autor (um homem de teatro que escreveu também vários artigos sobre a discriminação das mulheres na música) denunciava as práticas e as declarações discriminatórias da orquestra que recusou as audições às cegas, depois de as ter instituído por um pequeno período. A direcção da orquestra defendia a ideologia de uma uniformidade de género – só homens, excepto para... harpistas (!) – e de uma uniformidade «étnica» com base em premissas profundamente racistas, disfarçadas de «raiz cultural», e «aspecto visual do conjunto». Uma vez venceu, numa audição às cegas, um candidato japonês, recusado de seguida pelo facto de a sua cara não corresponder, segundo o director da orquestra, ao perfil da Pizzicato-Polka do concerto de Ano Novo.

A Filarmónica de Viena só integrou mulheres pela primeira vez em 1997, e tinha em 2013 apenas seis. Os «problemas» com a licença de maternidade foram usados como pretexto, mas as declarações dos seus dirigentes incluem ainda argumentos como «a diferença biológica», «dos lábios», «dos pulmões», «a possibilidade de relacionamentos amorosos no seio da orquestra» (note-se que este argumento consegue ser sexista e homofóbico ao mesmo tempo). A sua política de contratação continua a ser escandalosamente racista, sexista e discriminatória, apesar dos protestos consecutivos de várias instituições de defesa dos Direitos Humanos e da igualdade de género.

Em Portugal existem orquestras que realizam audições às cegas. A Orquestra Gulbenkian, por exemplo, pratica estas audições nas duas primeiras fases do concurso (das três que realiza) para integrar um naipe orquestral.

Nas rondas eliminatórias, os candidatos permanecem não identificados e tocam atrás de uma cortina. Há quem diga que o nervosismo das audições aumenta ainda mais, pois não são apenas os membros do júri que não vêem os candidatos, mas também os candidatos que não vêem o júri. Um violista da Calgary Philharmonic Orchestra declarou ao Calgary Herald, com alguma ironia: «A questão é que não sabemos o que é que os membros do júri estão a fazer atrás da cortina. Espera-se que estejam a ouvir.» A incorporação das classificações e dos preconceitos não é fácil de desmontar, nem parece ser suficiente a sua desconstrução teórica. Um método como este pode ajudar a quebrar muros, levantando, por  momentos, uma cortina. Mas, isoladamente, não dá conta nem das enormes transformações sociais que parecem levar hoje as mulheres a novos lugares no trabalho e na vida pública, nem das mudanças nas instituições escolares, nem das conquistas legais que decretam e defendem a igualdade, nem das lentas e longas lutas, na teoria e na prática, contra a discriminação feminina. E embora a lei possa proteger e promover a igualdade de género, parece sempre insuficiente, porque as harpas continuam a ser «para meninas» e as trompas «para meninos».

O senso comum reproduz ainda o sexismo dominante. Em português dizemos vulgarmente «sou músico». No entanto, quase não se usa “música” para uma mulher instrumentista, talvez por causa da confusão com outro substantivo, a música. Talvez seja apenas por isso. Mas podia até ser considerado belo e poético, em vez de ser visto como algo de baixo ou degradante, dizer:«Sim, sou música.» Virginia Woolf falava (no ensaio Three Guineas) dos «traços a giz desenhados no chão», de linhas invisíveis que construímos nas nossas cabeças e que separam mulheres e  homens em mundos que se excluem: «Inevitavelmente, nós consideramos a sociedade um lugar de conspiração, que engole o irmão que muitas de nós temos razões para respeitar na vida privada, e impõe no seu lugar um macho monstruoso, de voz tonitruante, de pulso rude, que, de forma pueril, inscreve no chão sinais a giz, místicas linhas de demarcação, entre as quais os seres humanos ficam fixados, rígidos, separados, artificiais. Lugares em que, ornado de ouro ou de púrpura, enfeitado de plumas como um selvagem, ele realiza os seus ritos místicos e usufrui dos prazeres suspeitos do poder e da dominação, enquanto nós, ‘suas’ mulheres, nos vemos fechadas na casa da família, sem que nos seja dado participar de nenhuma das numerosas sociedades de que se compõe a sociedade.» Espero que estejam a ouvir.

Este artigo foi publicado originalmente na Revista XXI n.º 8, sob o tema da Igualdade.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal