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Opinião GPS #4 - Breve reflexão sobre as políticas portuguesas para o Ensino Superior

Opinião GPS #4 - Breve reflexão sobre as políticas portuguesas para o Ensino Superior

Artigo de Cláudia S. Sarrico, Professora do ISEG - Lisbon School of Economics & Management e investigadora do CIPES - Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior.
10 min

Ensino Superior em Portugal: o que nos dizem os números?

O ensino superior em Portugal é indiscutivelmente um caso de sucesso, mas ainda há um défice de qualificação a este nível.  Se entre a população portuguesa entre 25 e 64 anos só 6% possui licenciatura, quando comparado com 14% para a UE22 (1), entre os 25 e 34 anos já 34% possui formação superior. A expansão do ensino superior em Portugal entre os mais jovens tem continuado ao longo das décadas pós-revolução de Abril, com um crescimento significativo recente, na década de 2007-2017: de 21% para 34%, mas ainda aquém da UE22 com 42%. O crescimento tem maior expressão entre as mulheres 42%, face aos 26% para os homens. 

A detenção de uma qualificação superior traz benefícios significativos aos indivíduos, nomeadamente financeiros.  Em Portugal, os diplomados do ensino superior entre os 25-64 anos ganham mais 70% do que os diplomados do secundário, o que contrasta com 51% na UE22.  Este diferencial de rendimentos será explicado em grande medida pelo facto de em Portugal a proporção de adultos entre os 25-64 sem educação secundária ser de 55%, mais do dobro da média da OCDE de 22%.

Em Portugal, os alunos que entram para o ensino superior são dos mais jovens da OCDE. Em termos dos alunos inscritos em instituições de ensino entre os 16 e os 20 anos, Portugal não está longe da UE22, e tem relativamente mais alunos entre os 18 e os 20 anos a frequentar o ensino superior do que a UE22. No entanto, fica aquém à medida que a idade aumenta, tendo relativamente menos alunos com mais de 20 anos e menos ainda com mais de 30 anos. 

Portugal tem poucos alunos no ensino superior a tempo parcial. Apresenta a terceira taxa mais baixa da OCDE de alunos inscritos no ensino superior em regime de tempo parcial: 5% comparada com 20%.

Portugal tem relativamente mais alunos a entrar para o mestrado e o doutoramento. Portugal tem relativamente poucos alunos a entrar no ensino superior para cursos de ciclo curto (associate degree), 6%, comparado com 12% para a UE22. Relativamente, tem menos alunos a entrar para a licenciatura (50% face a 56%) e mais alunos a entrar em mestrado (34% face a 27%), e em doutoramento (3,5% face a 2,6%).

Portugal tem relativamente poucos alunos internacionais a entrar no ensino superior, sobretudo ao nível da licenciatura e mestrado, melhorando a situação ao nível do doutoramento (2%, 4%, 19% face a 7%, 17%, 25% para a UE22).

O sistema de ensino superior português, em termos relativos, não parece ser particularmente selectivo. Portugal tem a terceira taxa mais elevada de aceitação de candidatos para o primeiro ciclo de ensino superior de entre os 13 países da OCDE para os quais há dados.  Em termos relativos, Portugal tem uma percentagem mais elevada de alunos a entrar em mestrado e doutoramento do que a UE22, mas fica aquém na percentagem de graduação desses níveis de ensino.  Isto levanta a questão se o acesso ao mestrado e doutoramento deveria ser mais selectivo, de forma a aumentar a eficiência formativa.  Eventualmente, alguns dos alunos que entram não estão preparados para prosseguir estudos a este nível e/ou não têm apoio suficiente para o fazer.

Portugal gasta relativamente pouco no ensino superior. Portugal gasta uma percentagem do PIB na educação não superior mais elevada do que a média da UE22 (3,94% face a 3,27%), mas o contrário é verdade para o ensino superior (1,29% face a 1,34%). O ensino superior em Portugal apresenta uma despesa por aluno em paridade de poder de compra que se afasta mais da média da UE22 do que nos outros níveis de ensino. A despesa encontra-se dividida em despesa com educação, despesa com investigação e despesa com serviços auxiliares. O desvio face à UE22 deve-se sobretudo à despesa com o serviço educativo, já que o desvio relativamente aos serviços auxiliares é positivo e o relativo à investigação é negativo, mas muito pequeno. Ainda assim, o ratio aluno/professor no ensino superior em Portugal é idêntico ao da média da UE22.

As famílias são uma importante fonte de financiamento do ensino superior em Portugal, representando mais de ¼ do financiamento (26%), comparado com somente 15% para a UE22. 

Portugal apresenta o maior diferencial da OCDE do valor médio de propinas entre a licenciatura e o mestrado, e as propinas de mestrado são relativamente elevadas. O valor médio em paridade de poder de compra das propinas de mestrado é o sexto mais elevado dos 28 sistemas da OCDE para os quais há dados. Poderá haver aqui um incentivo perverso para as instituições procurarem colmatar défices de financiamento com o recrutamento de alunos de mestrado que não estão preparados para este nível de ensino e que acabam por não concluir os estudos a este nível, como discutido acima.

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Sugestões para um debate sobre políticas portuguesas para o ensino superior

Diminuir o défice de qualificações da população incentivando a frequência do ensino secundário e do ensino pós-secundário não superior como parte essencial da trajectória para o ensino superior

O ensino superior português não é particularmente selectivo e aceita muitos dos que se candidatam. Para trazer mais gente ao ensino superior é necessário aumentar o número de pessoas capacitadas e motivadas para o frequentar, sobretudo juntos das pessoas com mais de 20 anos.

Primeiro, é preciso trazer alunos mais velhos, já na população activa, para o ensino secundário (sobretudo de cariz vocacional com aprendizagem em contexto de trabalho, dadas as baixas taxas de qualificação da população em geral) ou ensino pós-secundário não terciário (como porta de entrada para o ensino superior). Em Portugal, a idade média dos alunos é similar nos cursos gerais e nos cursos vocacionais do ensino secundário. A idade média de graduação no ensino secundário vocacional em países como Austrália, Islândia, Noruega, Dinamarca, Reino Unido, Espanha e Finlândia é bastante mais elevada do que em Portugal.

Discutir a possibilidade de abolir o numerus clausus na generalidade dos cursos

O mecanismo de numerus clausus como mecanismo de racionamento da oferta na generalidade dos cursos provavelmente já não se justifica e é uma singularidade no panorama europeu. Todos aqueles que demonstrem ter capacidade e motivação para beneficiar do ensino superior deverão poder aceder. E todas as instituições que demonstrem ter os meios materiais e humanos necessários a oferecer determinado ciclo de estudos a determinado número de alunos deverão poder fazê-lo. Os processos de avaliação externa da qualidade deverão garantir que assim é.

Não havendo numerus clausus criam-se ainda incentivos para que as instituições respondam à procura efectiva de ensino superior, quer em quantidade, quer em natureza, i.e. 1) níveis de ensino: ciclo curto, licenciatura, mestrado, doutoramento, 2) áreas de educação e formação e áreas de investigação e desenvolvimento, 3) orientação mais académica, ou mais profissionalizante com componente de aprendizagem em contexto de trabalho, 4) orientação mais para o mercado de trabalho da região, do país, ou internacional, 5) mais centrado em áreas do conhecimento específicas ou mais de tradição de educação liberal das artes, humanidades e ciências, 6) em regime de tempo integral ou parcial, 7) para alunos jovens ou para alunos mais velhos e que trabalham, 8) para alunos nacionais e internacionais.

Discutir a abolição da linha binária entre universidades e politécnicos

A natureza profissionalizante ou mais académica de um curso não depende da instituição ou nível de ensino, mas das características daquilo que são os objectivos do curso. Assim, haverá cursos profissionalizantes em todos os níveis de ensino, incluindo muitos dos actualmente leccionados em universidades (e.g. medicina, arquitectura, engenharia, gestão, formação de professores, direito), incluindo o doutoramento (e.g. doutoramento em empresas). Mais uma vez, as instituições deverão poder oferecer aquilo para o que conseguirem demonstrar estar capacitadas em termos dos recursos materiais e humanos que possuem, e isso levará à acreditação externa dos seus cursos. A diferenciação de missões entre instituições emergirá naturalmente e far-se-á mais pelo nível mais elevado de ensino que ofereçam àqueles que as procuram: ciclo curto, licenciatura, mestrado e doutoramento, do que uma pretensa distinção entre ensino académico versus profissional e investigação pura versus investigação aplicada. Eventualmente, o título de universidade só poderá ser concedido a instituições que possam atribuir doutoramento num leque variado de áreas científicas. Tal como a abolição do numerus clausus, esta medida incentivará a diversificação da oferta ao encontro da necessária diversificação de públicos.

Tornar transparente o custo do ensino superior

É importante avaliar o custo efectivo de cada curso. Não é provável que o diferencial actual entre as propinas de licenciatura e mestrado seja proporcional ao diferencial do custo dos cursos. As propinas associadas a cada curso, independentemente de ser de licenciatura, mestrado e doutoramento, deverão ser proporcionais ao custo efectivo de cada curso. As universidades deverão poder cobrar as propinas que correspondam ao custo efectivo do serviço educativo que prestam. O cálculo deste custo deve ser transparente e verdadeiramente reflectir o serviço prestado (para o leitor interessado sugiro a leitura do Delta Cost Project). Quem deve pagar as propinas e em que proporção é outra questão.

Aumentar o nível de recursos e a equidade no ensino superior

Portugal gasta relativamente pouco no ensino superior, e o nível de contribuição das famílias é já bastante elevado, o que levanta problemas de equidade no acesso, sobretudo ao nível do mestrado. Sugere-se discussão da introdução de empréstimos reembolsáveis em função dos rendimentos futuros dos graduados. Estes empréstimos deverão cobrir os custos directos com propinas e ainda custos de manutenção, e estar acessíveis a todos os que demonstrem estar aptos a aceder, independentemente da idade, instituição, curso, regime de frequência, como forma de garantir a equidade no acesso e nos resultados do ensino superior. Adicionalmente, dada a evidência de que os mais desfavorecidos financeiramente têm mais aversão ao risco de endividamento, e como medida de discriminação positiva, deverão ainda ser atribuídas bolsas de estudos atribuídas sob condição de recursos a este grupo.

Mais uma vez, é importante salientar que só aqueles que demonstrem estar capacitados e motivados para beneficiar do ensino superior deverão ter acesso aos empréstimos, de forma a salvaguardar os cidadãos contribuintes de um risco demasiado elevado de endividamento estudantil.

Diversificar as fontes de financiamento e alargar a autonomia das instituições

Discutir o alargamento da autonomia das instituições para que elas possam diversificar as suas actividades e assim também diversificar as suas fontes de rendimento, tais como cursos de formação e educação contínua, contratos de prestação de serviços e de investigação com o sector comercial, sector público e terceiro sector, filantropia, etc. Dar ainda efectiva autonomia na utilização destes recursos.

Garantir a qualidade

É necessário que os processos de avaliação externa da qualidade garantam que as instituições de ensino superior só recrutam para os diferentes cursos aqueles que têm as competências e a motivação necessárias para beneficiar do ensino superior em geral, e do nível de ensino a que se candidatam. Nomeadamente, que num contexto de ausência de numerus clausus, o que é já o caso ao nível dos mestrados, que se evite o fenómeno de ‘bums on seats’, i.e. que haja incentivos ao recrutamento de alunos que não estão preparados e que depois terão dificuldade em progredir, concluir, concluir em tempo razoável, e/ou adquirir conhecimentos e competências compatíveis com o grau de ensino atribuído, somente como garantia de acesso a financiamento por parte da instituição, não protegendo os direitos dos estudantes (e dos cidadãos contribuintes, no caso de haver empréstimos garantidos pelo Estado).

É ainda necessário que se continue a avaliar com rigor se as instituições têm os meios materiais e humanos para assegurarem uma aprendizagem efectiva e uma experiência satisfatória aos estudantes que acolhem.

(1) A fonte dos dados utilizada é a OCDE.  EU22 refere-se aos 22 países que eram membros tanto da União Europeia como da OCDE em 2017. Exclui a Bulgária, Croácia, Chipre, Lituânia, Malta, Roménia. A Lituânia acedeu à OCDE em 2018.

Cláudia S. Sarrico é professora do ISEG - Lisbon School of Economics & Management e investigadora do CIPES - Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior. Consulte o seu perfil no GPS-Global Portuguese Scientists.

Fotografia de capa por Priscilla du Preez.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal