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«Mudanças rápidas na vida podem causar sofrimento psicológico em qualquer idade»

Entrevista a Maria João Heitor, médica especialista em Psiquiatria, presidente da Sociedade de Psiquiatria e Saúde Mental e diretora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Beatriz Ângelo.
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Os efeitos da ameaça provocada pela pandemia da Covid-19 não se fazem esperar. Segundo a médica especialista em Psiquiatria Maria João Heitor, “provavelmente, vão aumentar o número de casos de ansiedade, depressão e os problemas ligados ao álcool e à toxicodependência”. A presidente da Sociedade de Psiquiatria e Saúde Mental diz que “é difícil prever que tipo de marcas vão ou não persistir” na saúde mental dos portugueses. Mas uma coisa parece certa: “Não vamos retornar à normalidade como a conhecíamos”.

 

Que desafios para o equilíbrio psicológico enfrentamos, actualmente?

Estamos num período sem precedentes, cheio de incerteza, insegurança e medo, resultante de uma ameaça à saúde pública. Esta ameaça instalou-se abruptamente, levou a um confinamento social e familiar, há famílias separadas, não houve tempo para que as pessoas se adaptassem. É uma ameaça que coloca inúmeros desafios: físicos, pessoais, sociais e emocionais.

 

Quais os factores que mais ameaçam a nossa saúde mental, neste momento?

O luto, a separação da família, circunstâncias em que a vida está em risco. E a deterioração das condições socioeconómicas pode originar um efeito cascata. O desemprego e o trabalho temporário estão associados a um menor rendimento e a maiores desigualdades sociais, situações que predispõem a stress, ansiedade e depressão.

 

Há grupos de maior risco?

Sim. As pessoas que já sofrem de doença mental grave e os indivíduos em que a pandemia ou a crise económica tenham precipitado uma perturbação psiquiátrica latente. Também se consideram grupos vulneráveis os doentes infectados e as suas famílias, as pessoas com condições médicas pré-existentes, os profissionais de saúde e as mulheres. Outro grupo de maior risco são os adultos mais velhos, com recursos mais limitados – de que são exemplo o acesso reduzido à internet e a smartphones, dispositivos que podem ser úteis neste novo contexto.

 

Porque é que inclui as mulheres nos grupos de risco?

As mulheres, no geral, apresentam mais sofrimento psicológico, ansiedade, depressão e perturbação de stress pós-traumático.

 

E em que medida é que os profissionais de saúde também se enquadram?

O risco é maior para os profissionais da saúde que trabalham nos Serviços de Urgência, nas enfermarias com doentes positivos para SARS-CoV-2 e nos Cuidados Intensivos. Porque estão expostos a vários stressores e riscos que podem provocar sofrimento emocional no imediato e, a médio e longo-prazo, podem surgir casos de stress pós-traumático.

 

Pode dar exemplos dos stressores e riscos que podem originar problemas mentais?

Há um medo pandémico, realista, de ser contagiado e um receio, mais que legítimo, de contagiar familiares. Podem ser alvo de estigma pelo risco infeccioso, tanto em casa como nas comunidades onde residem. Em muitos casos, o afastamento da família (sobretudo dos filhos) colocou pressão nas relações familiares e foi necessário organizar uma logística diferente da habitual dinâmica. O aumento da carga laboral e o uso de equipamentos de protecção individual muito incómodos, são outros factores de stress. 

 

Antecipa que a prevalência de certas doenças mentais aumente?

Provavelmente, vão aumentar o número de casos de ansiedade, depressão e os problemas ligados ao álcool e à toxicodependência. Vamos assistir a problemas diferentes, ao longo do ciclo de vida. Desde o recém-nascido que se pode ver privado da relação precoce com a mãe, se esta tiver Covid-19, com todas as possíveis consequências de uma vinculação deficitária. Até aos idosos com quadros demenciais ou depressão que possam estar mais isolados ou abandonados. Vamos ver mais situações de perturbação de stress pós-traumático, por exemplo em sobreviventes da Covid-19, mesmo na fase pós-pandemia. Há ainda outros aspectos que, pela sua transversalidade, não posso deixar de enumerar: a violência doméstica, os abusos e maus-tratos.

 

É possível prevenir as doenças mentais que mencionou, nas actuais circunstâncias?

Isso vai depender, essencialmente, de uma intervenção concertada, intersectorial, com implementação de políticas públicas saudáveis que não envolvem apenas a saúde. É muito importante investir em autocuidados básicos que promovam o bem-estar e a resiliência pessoal, que ajudem a prevenir sofrimento psicológico e formas ligeiras a moderadas de ansiedade e depressão.

 

Como estão agora a ser acompanhados os problemas mentais dos portugueses?

As linhas de apoio psicológico e emocional dirigidas à população geral ou a profissionais de saúde, linhas locais ou nacionais, têm um lugar de destaque na resposta em termos de primeiros socorros emocionais e intervenção na crise. Mas, nas fases de desconfinamento, ainda temos de reforçar a articulação entre serviços de saúde mental, cuidados de saúde primários, autarquias, IPSS, Organizações Não Governamentais e outros parceiros da comunidade. Acima de tudo, há que criar mecanismos e canais para evitar atrasos de diagnóstico, falhas na medicação e descompensação clínica com pior evolução da doença.

 

A automedicação pode aumentar?

Há sempre o risco da automedicação, sobretudo se as pessoas estiverem menos informadas e se o acesso aos serviços for difícil. O consumo de benzodiazepinas tem de ser evitado, dado que estes fármacos têm indicações muito precisas e o seu uso tem de ser de curta duração. Quanto aos antidepressivos, devem ser sempre prescritos por um médico de acordo com a indicação terapêutica – por exemplo, em casos de depressão ou ansiedade marcada.

 

Que conselhos daria a alguém que precise de ajuda?

Que procure o seu médico de família e, se necessário, o psiquiatra, para ser feita uma boa avaliação clínica, estabelecido um diagnóstico e indicada uma abordagem terapêutica. Esta abordagem pode incluir um acompanhamento psicoterapêutico e/ou farmacológico. Dependendo do caso, o psiquiatra, para lá da sua intervenção, pode referenciar para outros profissionais de saúde, nomeadamente psicólogo ou outros, numa perspectiva de multidisciplinaridade.

 

A pandemia vai deixar marcas permanentes na saúde mental?

É difícil prever que tipo de marcas vão ou não persistir. Provavelmente, não vamos retornar à normalidade como a conhecíamos. Mas haverá uma evolução acelerada de tendências que já se desenhavam. Sobretudo, a comunicação vai mudar, com a manutenção de uma maior distância social, com reuniões virtuais, teleconsultas, videoconsultas, e o uso mais frequente de máscaras também vai ocultar parte da comunicação não verbal. As mudanças rápidas na vida das pessoas podem causar sofrimento psicológico em qualquer faixa etária. E a adaptação ao stress pode assumir formas mais ou menos transitórias e moderadas, como as perturbações da adaptação, ou formas mais graves de ansiedade marcada e de depressão major. Temos de estar atentos ao eventual maior risco de suicídio, quer no período pandémico quer no pós-pandemia.

 

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O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal