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Depender da bondade de estranhos

Depender da bondade de estranhos

Excerto do livro «Crise e Castigo e o Dia Seguinte», de Fernando Alexandre, Luís Aguiar-Conraria e Pedro Bação, publicado pela Fundação (2019).
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Em 2012, o endividamento das famílias, das empresas e do Estado atingiu o valor máximo de cerca de 380% do PIB. De então para cá houve uma redução significativa do endividamento. Em 2018, a dívida das famílias tinha diminuído de 102% para 81% do PIB e a dívida das empresas de 152% para 120% do PIB. A dívida do Estado representava, em 2018, 121% do PIB.

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Endividamentos das famílias, das empresas e do Estado (% do PIB)

Como se mostra no livro 'Investimento Empresarial e o Crescimento da Economia Portuguesa', coordenado por Fernando Alexandre para a Fundação Calouste Gulbenkian, os elevados níveis de endividamento condicionaram o investimento das empresas, constituindo uma restrição ao crescimento da economia. No entanto, este efeito foi moderado pela forte redução das taxas de juro, em resultado da política monetária do BCE. Um dos impactos mais relevantes para as famílias e empresas ocorreu na taxa de juro Euribor, que apresenta valores negativos desde 2016. Em alguns contratos de crédito para aquisição de habitação, estas taxas de juro negativas mais do que compensam o prémio de risco, resultando grosso modo (apesar dacontestação dos bancos) numa redução do capital em dívida.

Apesar do valor acumulado do endividamento das famílias e das empresas ter vindo a diminuir, os novos créditos para aquisição de habitação e consumo têm crescido nos últimos anos, pelo que poderá estar para breve o fim da tendência de redução do endividamento privado. Numa economia com elevado endividamento externo e que necessita de investimento para poder aumentar o seu potencial de crescimento, a poupança ganha uma importância acrescida como fonte de financiamento. A taxa de poupança agregada estabilizou nos 15% do PIB entre 2013 e 2015, tendo aumentado ligeiramente nos anos seguintes para valores em torno dos 17% do PIB. O aumento nos últimos anos deveu-se essencialmente à melhoria registada no contributo do Estado. O contributo do Estado tornou-se positivo em 2017 e 2018, algo que já não acontecia há cerca de duas décadas, quando Portugal estava obrigado a cumprir os critérios de convergência para a participação na criação do Euro. Por outro lado, a poupança das famílias está em valores mínimos históricos, tendo diminuído de 5,5% do PIB para 3,2% do PIB.

As empresas, que deram o principal contributo para a recuperação da poupança a seguir ao início da crise financeira internacional, reduziram a sua poupança de 10% do PIB em 2013 para 6% do PIB em 2018. Esta redução da poupança das empresas, conjugada com a recuperação do investimento, tornou-as novamente mais dependentes dos capitais alheios. Dada a importância dos bancos no financiamento das empresas (e da economia em geral), a recuperação do sistema bancário foi um dos principais temas da economia portuguesa ao longo dos últimos anos.

O Banco de Portugal contabilizou em 23,8 mil milhões de euros (cerca de 12% do PIB) a ajuda pública aos bancos, entre 2007 e 2018.

[...] Entre nacionalizações, fusões e aquisições, o Estado português teve de disponibilizar fundos avultados ao sistema bancário. Num relatório extraordinário publicado a 23 de Maio de 2019, o Banco de Portugal contabilizou em 23,8 mil milhões de euros (cerca de 12% do PIB) a ajuda pública aos bancos, entre 2007 e 2018. Os fundos públicos concentraram-se na Caixa Geral de Depósitos (6,25 mil milhões), Banco Português de Negócios (4,9 mil milhões), Banco Espírito Santo (4,33 mil milhões) e BANIF (3,3 mil milhões). O BCP (3 mil milhões) e o BPI (1,5 mil milhões) devolveram na íntegra, acrescidos dos juros contratualizados, os fundos disponibilizados pelo Estado em 2012.

[...] O grande factor de risco do sistema bancário e que tem penalizado a sua rendibilidade, é o elevado peso do crédito malparado. Nas famílias, o problema do crédito em incumprimento concentrou-se no crédito ao consumo. No caso do crédito para aquisição de habitação (que representa cerca de 80% do crédito às famílias), o crédito em incumprimento era apenas 1% do total em 2018 (3% em 2015). No caso do crédito ao consumo, o crédito em incumprimento atingiu o valor máximo de 13% do total em 2014, tendo diminuído para 6% em 2018.

As situações mais graves de crédito em incumprimento estiveram concentradas nas empresas. Em 2015, 15% do crédito às empresas estava em situação de incumprimento, tendo diminuído para 8% em 2018. Vários economistas têm associado a origem da estagnação da economia portuguesa a um problema na alocação de crédito. De acordo com essa visão, existiu um problema no sistema financeiro que conduziu a que o crédito se concentrasse em sectores com menor potencial de crescimento (e.g., sectores não transaccionáveis) e em empresas menos dinâmicas. Os dados relativos ao crédito em incumprimento e ao peso das empresas chamadas zombie – empresas em estado comatoso, que se mantêm vivas graças ao apoio dos bancos – no tecido empresarial português parecem corroborar aquela hipótese. Em 2012, as empresas zombie representavam 17% do emprego e 25% do crédito bancário total. Em 2017, por efeito da recuperação da economia (e também da morte de muitas empresas), aqueles números caíram para 9,9% e 8,3%, respectivamente.

O livro 'Crise e Castigo e o Dia Seguinte: Os Desequilíbrios, o Resgate e a Recuperação da Economia Portuguesa' está disponível na loja online da Fundação, com 10% de desconto e portes de envio gratuitos.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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Portuguese, Portugal