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Opinião GPS #3 - Descolonização, guerra civil e sociedade pós-colonial em Angola e Moçambique

Opinião GPS #3 - Descolonização, guerra civil e sociedade pós-colonial em Angola e Moçambique

Artigo de Daniel Rio Tinto, investigador do Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL).
4 min

A memória da Guerra Colonial, do processo de descolonização e da sua relação com a democratização da sociedade portuguesa será, provavelmente, o tópico mais importante da história contemporânea de Portugal. Desde 1974, incontáveis estudos e ensaios debruçam-se sobre a temática. Muito também se discute a questão da responsabilidade portuguesa no processo de independência, e em que medida poderia esta participação - se diferente - ter evitado o resultado das sangrentas guerras civis pós-coloniais, nomeadamente em Angola e em Moçambique.

Este contrafactual, embora interessante, dificilmente será capaz de dizer-se conclusivo, na medida em que a variedade de elementos em jogo desfavorece a compartimentalização causal pretendida. O exercício intelectual, todavia, ajuda-nos a perceber o que falta às teses que indicam que terá sido causa suficiente a suposta falência do processo de transição/descolonização por (ir)responsabilidade da ex-metrópole, tal como àquelas as que determinam que Portugal nada poderia ter feito de forma diferente que mudasse o rumo que tomaram os novos países independentes da África Lusófona. Muitos outros trabalhos, que também observam a forma como o colonialismo e a descolonização moldaram Portugal, consideram e dão substância à importante ideia do filósofo Frantz Fanon de que o colonialismo, enquanto instituição, foi fundamental para definir não só os territórios e as sociedades que foram vítimas do colonialismo mas também as sociedades que exerceram o poder colonial, resultando numa estreitíssima relação mutuamente constitutiva.

Sem perder de vista esta contínua relação, é preciso também olhar para as formas como as guerras civis que se seguiram ao processo formal de descolonização, em toda a sua riqueza de relações causais, ajudaram a definir as realidades sociais em Angola e Moçambique. A violência utilizada com fins políticos foi marcante durante o período colonial, e é bem conhecido o vasto repertório repressivo da autoridade estatal mandatada desde Lisboa, para assegurar o que, aos olhos do Estado, seria o império das leis e da ordem. É igualmente relevante e notável o papel que a violência teve durante o processo de descolonização, sendo esta central em influenciar processos políticos fundamentais, tanto na metrópole quanto nas então colónias. Não é surpreendente que, através de um processo quase mimético, as novas forças políticas nascidas nos referidos países independentes tenham implementado modelos de exercício de poder centrados no exercício da violência. O sociólogo americano Charles Tilly lembra, de forma contundente, que o processo de construção dos estados modernos é, quase que fundamentalmente, um processo de exercício do poder através da violência e de cristalização da autoridade política nestes termos. Assim, não seria de esperar que o estado pós-colonial na África Lusófona fosse despido desta característica: transparece aqui o caráter carregado e mítico de que uma “incivilidade” terá determinado a incapacidade de resolver de forma pacífica o conflito político pós-colonial e, mais ainda, reforça a visão de que, quando cessa - pelo menos formalmente - o domínio colonial Europeu na África, mais similar é a história política dos Estados nos dois continentes.

Desta forma, desgasta-se a base argumentativa de que os atores do cenário político pós-colonial na África precisam de ser explicados por uma teoria necessária e fundamentalmente diferenciada de outros atores políticos que possuem características similares (àquilo a que o cientista político estruturalista Kenneth Waltz chamou de like units). Isto não quer dizer que os atores não têm ou terão qualquer especificidade (pelo que vale sempre a pena continuar a estudar estes casos), mas que eles também estão sujeitos a todo um repertório de mecanismos já bem teorizados, que explicam as relações políticas e o uso da violência com fins políticos no contexto estatal e não-estatal. Por exemplo, o papel da insegurança no contexto pós-colonial é maioritariamente preterido em estudos existentes que, por sua vez, privilegiam explicações centradas na competição predatória por poder como fim em si próprio, com alicerce na visão míope que automaticamente equivale a imagem da liderança política na África pós-colonial com a do warlord.

Assim, enquanto não houver abertura para uma abordagem mais agnóstica e mais cética do contexto pós-colonial da África Lusófona, as implicações do estado da arte sobre o tema continuarão a rondar o maniqueísmo simplificador e reducionista que ainda habita o imaginário coletivo das sociedades pós-coloniais, tanto na África Lusófona como em Portugal.

Daniel Rio Tinto é doutorado em Ciência Política e Estudos Internacionais na Universidade de Birmingham (Reino Unido) e investigador no Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL). Consulte o seu perfil no GPS-Global Portuguese Scientists.

Imagem de capa de juls26.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal