A
A
A temperatura média em Portugal pode subir 7ºC. Num cenário optimista, aumenta de 1ºC a 3ºC

A temperatura média em Portugal pode subir 7ºC. Num cenário optimista, aumenta de 1ºC a 3ºC

Excerto do livro «Pseudociência», de David Marçal, publicado pela Fundação.
7 min

A controvérsia acerca das alterações climáticas é um excelente exemplo de uma polémica social que não tem qualquer correspondência no plano científico. Todo o conhecimento de que dispomos indica de forma clara e consistente três coisas: o planeta está a aquecer, a responsabilidade é nossa e há medidas que podemos tomar para inverter essa tendência. Aqueles que recusam reconhecer as alterações climáticas, ora negam que o planeta esteja a aquecer, ora admitem que o aquecimento é real mas defendem que nós não temos nada que ver com isso, ora admitem que tudo isto é verdade, mas não vale a pena  preocupar‑nos, porque não há nada a fazer. Para sustentar qualquer uma destas posições nada mais têm do que conjecturas não fundamentadas e uma grande nuvem de poeira que procuram lançar sobre o assunto.

Não usei as palavras «todo» e «nada» por acaso. Não há efectivamente controvérsia científica nenhuma acerca dos pilares fundamentais do conhecimento sobre este assunto. Não há, porque não há ciência publicada que demonstre que haja. É isso que mostra uma revisão sistemática da literatura científica feita pela historiadora de ciência Naomi Oreskes. Nesse trabalho, publicado em 2004 na revista Science, a investigadora analisou os mais de 900 artigos científicos sobre alterações climáticas publicados entre 1993 e 2003. Entre esses não havia nenhum que refutasse a ideia de que a Terra está a aquecer e que as principais causas desse aquecimento são as actividades humanas. […] Em 2007, Oreskes fez uma nova análise na qual concluiu que 75 por cento dos artigos científicos sobre alterações climáticas apoiavam explícita ou implicitamente a afirmação de que «o clima da Terra está a ser afectado pelas actividades humanas» (os restantes 25 por cento não tomavam posição acerca do assunto, pois eram estudos sobre o clima no passado distante ou sobre técnicas de medição de dados climáticos).

Há poucos assuntos que sejam tão estudados, debatidos e escrutinados no seio da comunidade científica como as alterações climáticas. E o epicentro desse debate é o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa, habitualmente usada, derivada de Intergovernmental Panel on Climate Change). Neste painel, criado pelas Nações Unidas em 1988, colaboram voluntariamente cientistas de todo o mundo, que revêem e avaliam toda a literatura científica acerca de alterações climáticas. Conta com a participação de 193 países, incluindo Portugal, e tem como objectivo fornecer informações para apoiar os governos na tomada de decisões sobre políticas climáticas. O IPCC publica regularmente relatórios, que têm como base todo o conhecimento científico acerca de alterações climáticas.

[…] As principais ideias‑chaves do último relatório do IPCC são estas:
• O aquecimento do sistema climático é inequívoco. Esta conclusão assenta em múltiplas observações e linhas independentes de investigação.
• A influência humana no sistema climático é clara. Esta conclusão resulta da combinação dos modelos de simulação do clima com as alterações climáticas já observadas.
• A continuação da emissão de gases de efeito de estufa irá provocar mais alterações climáticas. Conter as alterações climáticas exigirá uma redução constante e substancial das emissões de gases de efeito de estufa.

[…] O problema não é o efeito de estufa, sem o qual estaríamos todos congelados, o problema é o aumento do efeito de estufa. É como os impostos. É natural que existam, mas ninguém gosta quando aumentam.  Há vários gases de efeito de estufa. O mais importante, do ponto de vista ambiental, é o dióxido de carbono. É um gás extremamente raro na atmosfera. […] O aumento da temperatura da Terra tem uma relação directa com o aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera. Sabemos isso, não só por causa dos registos de temperatura e medições de dióxido de carbono feitas desde os anos 50, mas também graças aos registos paleoclimáticos. As bolhas de ar aprisionadas no gelo permitem saber como era a composição da atmosfera até há cerca de 800 mil anos. E nesse longo período de tempo, verifica‑se uma correlação muito próxima entre a concentração de dióxido de carbono na atmosfera e a temperatura da Terra. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumentou 40 % desde os tempos pré‑industriais, principalmente como resultado das actividades humanas. Os níveis actuais de dióxido de carbono na atmosfera são mais altos do que alguma vez foram nos últimos 800 000 anos. E continuam a subir, porque nós continuamos a emitir demasiado dióxido de carbono. Estas emissões resultam essencialmente da queima de combustíveis fósseis (como os que usamos nos depósitos dos nossos carros e para produzir boa parte da energia que consumimos) e da actividade pecuária (o metano, proveniente dos intestinos das vacas, é um importante gás de efeito de estufa). Para baixarmos as emissões de gases de efeito de estufa temos de mudar o modo como vivemos. Isso implica usar veículos mais eficientes, recorrer a fontes de energia renováveis, viajar menos e comer menos carne.

Quanto mais subir a temperatura maior será o risco de incêndios florestais. A água disponível para a agricultura também poderá escassear, fazendo baixar a produção e aumentar significativamente os custos de irrigação.

[…] Os ecossistemas e a economia são muito sensíveis às mudanças no clima. A produção agrícola, a biodiversidade marinha e terrestre correm sérios riscos. E, por razões geográficas, disponibilidade de água e desertificação, quem está mais vulnerável aos impactos das mudanças no clima são as pessoas mais pobres, que vivem nos países mais pobres. […] As escolhas individuais e as decisões políticas tomadas agora irão determinar como será o clima e a vida no futuro. Os impactos das alterações climáticas não serão iguais em todo o lado. O aquecimento será maior na Europa do que a média global. No Sul da Europa será ainda maior e Portugal irá ser particularmente atingido.

De acordo com o pior cenário (que assume que pouco ou nada será feito para controlar as emissões de dióxido de carbono e que a sua  concentração na atmosfera atingirá mais de 900 partes por milhão em 2100), as temperaturas médias anuais poderão subir até 7 ºC em Portugal. Nos meses de Verão, e nesse cenário, a subida poderá chegar aos 9 ºC. O nível das águas do mar poderá subir até 81 centímetros. Poderemos também assistir a uma redução, até 40 por cento, da precipitação no Sul do país. Num cenário optimista, mas possível, as emissões sobem durante a primeira metade deste século e depois baixam para um nível inferior ao actual. Nesse cenário a concentração de dióxido de carbono em 2100 ficará próxima das 500 partes por milhão, a temperatura em Portugal poderá subir entre 1 e 3 ºC e o nível das águas do mar aumentará até 62 centímetros.

Quanto mais subir a temperatura maior será o risco de incêndios florestais. A água disponível para a agricultura também poderá escassear, fazendo baixar a produção e aumentar significativamente os custos de irrigação. Em Portugal, com temperaturas demasiado elevadas no Verão, o turismo também será negativamente afectado. Quanto mais subir o nível das águas do mar, maior será o risco de inundações nas zonas costeiras. Com um clima mais seco e com menos água nos rios, a produção hidroeléctrica no Sul da Europa irá baixar de forma relevante. A probabilidade de ocorrerem fenómenos climáticos extremos, como ondas de calor e cheias, também aumenta com as alterações climáticas.

Não há uma segunda corrente científica acerca das alterações climáticas. Há um consenso avassalador, consistente e amadurecido, acerca de tudo o que escrevi atrás. Como é então possível que possa persistir na opinião pública a ideia de que existe uma controvérsia acerca do assunto? Por um lado, essa  controvérsia é alimentada intencionalmente. Por outro, porque nos é confortável pensar que não temos de mudar o nosso estilo de vida. Que não faz mal continuar a levar crianças de 30 quilos à escola em carros particulares a gasóleo que pesam mais de uma tonelada, a viajar de avião várias vezes por ano, e a comer toda a carne de vaca que quisermos. O capitalismo convenceu‑nos de que é legítimo termos o estilo de vida que conseguirmos pagar de um modo honesto. Aceitar restrições aos nossos hábitos de consumo, por razões éticas e ambientais, é ainda uma ideia difícil de aceitar. Portanto, junta‑se o engano com a vontade de ser enganado.

David Marçal é autor do ensaio Pseudociência, publicado pela Fundação. Este texto é um excerto do livro, que está disponível na loja online da Fundação.

Imagem de capa: fotografia de Bob Blob sobre uma manifestação em Union Square, em São Francisco, nos Estados Unidos.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal