A
A
Mas-havera-ainda-duvidas-de-que-a-Russia-se-imiscuiu-nas-eleicoes-norteamericanas

Mas haverá ainda dúvidas de que a Rússia se imiscuiu nas eleições norte-americanas?

Artigo de opinião de José Milhazes, historiador, jornalista e autor do ensaio «Rússia e Europa: uma parte do todo» (FFMS).
4 min

«Os confrontos na Síria constituem um dos mais flagrantes exemplos. Violentos combates, que provocam milhares de mortos e feridos, são acompanhados por uma guerra de informação e manipulação nunca vista.»

A Rússia imiscuiu-se mesmo na campanha eleitoral que levou à eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos? Claro que sim, e só ingénuos poderão pensar o contrário. E porque não fazê-lo se o Kremlin não esconde que tem interesses globais militaristas, e até agressivos? O inverso é que seria estranho, principalmente se tivermos em conta que vivemos no mundo da informação e globalização.

As investigações sobre a ingerência russa no processo eleitoral norte-americano continuam a aprofundar-se e a Justiça de Washington até já pediu a extradição de 13 cidadãos russos, entre os quais está Evgueni Prigojin, homem próximo do Presidente Vladimir Putin, que, segundo a Justiça norte-americana, estariam envolvidos neste processo.

O Kremlin recusa a extradição de qualquer cidadão seu, estando no seu pleno direito, mas desmente essas e outras acusações de tal forma que os desmentidos fazem lembrar mais o velho ditado:” Apanha que é ladrão!”.

Numa recente entrevista à televisão norte-americana NBC, Putin acusou as autoridades norte-americanas de se “imiscuirem constantemente” nas eleições russas, mas frisa que a Rússia “não fez e não tenciona fazer isso”.

As razões que o dirigente russo alega em defesa da sua política nesse campo poderiam ser credíveis se apresentadas por líderes do que antes se chamava “Terceiro Mundo” e não por aquele que afirma possuir armas nunca vistas, desde mísseis invisíveis até submarinos comandados à distância.

“Nós temos os nossos princípios que consistem em que não permitimos que se imiscuam nos nossos assuntos internos e não nos intrometemos nos alheios. Este é um princípio nosso… Segundo, não temos a quantidade necessária de instrumentos”, declarou ele, precisando: “Nós temos apenas a Russia Today [canal televisivo russo em várias línguas estrangeiras]”.

Depois de explicações tão esfarrapadas como esta, talvez seja ainda mais importante não só esclarecer através de que meios foi possível o Kremlin imiscuir-se nos assuntos internos dos Estados Unidos e de países europeus, como também preparar novos e aperfeiçoar os mecanismos já existentes de “guerra cibernética”. A segurança dos Estados e dos seus cidadãos não se reduz apenas ao poderio militar, é cada vez mais importante a sua capacidade de reagir aos novos desafios que o avanço tecnológico coloca nesse sector.

A “guerra cibernética”, parte integrante da “guerra híbrida”, é já há muito uma realidade e elevou a um novo nível a “Guerra Fria”, que alguns consideram ter terminado com o fim da União Soviética, em 1991, mas que nunca acabou, tendo apenas passado por fases mais ou menos agudas. Presentemente, ela continua com meios mais sofisticados, ao mesmo tempo que não foram postas de parte formas clássicas como os “conflitos locais”. Os confrontos na Síria constituem um dos mais flagrantes exemplos. Violentos combates, que provocam milhares de mortos e feridos, são acompanhados por uma guerra de informação e manipulação nunca vista, onde a opinião pública é confrontada com numerosas notícias não apenas tendenciosas, mas completamente falsas. E isto é feito, é maior ou menor medida, pelos numerosos protagonistas nesse conflito.

Isto acontecia no passado (veja-se, por exemplo, a “matança de Katyn” de 1940, onde durante décadas se discutiu a autoria do massacre), mas, hoje, torna-se particularmente devastador com os meios modernos de tratar e transmitir a informação.

Contudo, gostaria de frisar que seria muito grave e irresponsável atribuir ao Kremlin o papel fundamental na eleição de Donald Trump. A vitória deste nas presidenciais de Novembro de 2016 deveu-se a outros factores, principalmente de carácter interno nos Estados Unidos. O mesmo se pode dizer em relação à votação do Brexit na Grã-Bretanha ou às eleições presidenciais em França do ano passado.

José Milhazes é historiador e jornalista. É autor do ensaio Rússia e Europa: uma parte do todopublicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

    Portuguese, Portugal