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Carlos Farinha Rodrigues e Paulo Côrte-Real apresentam novos estudos da Fundação

«Mobilidade social em Portugal» e «Justiça entre gerações».
22 min
Publicamos os textos que Carlos Farinha Rodrigues e Paulo Côrte-Real leram na apresentação dos novos estudos da Fundação, sobre «Mobilidade social em Portugal» e «Justiça entre gerações».

Mobilidade Social em Portugal: Alguns comentários
(Por Carlos Farinha Rodrigues)

Em primeiro lugar gostava de agradecer à FFMS o convite para esta conferência e cumprimentar todos os participantes com especial destaque para os membros do projecto coordenado pelo Prof. Teresa Bago d’Uva.

Gostava igualmente de referir que para mim é um prazer comentar este trabalho por duas razões: pela relevância do tema e a proximidade deste às minhas próprias áreas de investigação e pelo seu autor principal – a Teresa Bago d’Uva - cujo início de carreira profissional tive a oportunidade de acompanhar com muito agrado no INE. Isto para além do facto igualmente importante de a Teresa ser formada pelo ISEG e por um dos cursos mais importantes desta casa – MAEG.

O primeiro aspecto que gostaria de destacar tem a ver com a relevância e a actualidade do tema. Compreender a mobilidade social é um elemento fundamental para perceber os mecanismos sociais que ocorrem na sociedade portuguesa e as principais mutações que nela acontecem. Não é possível discutir os principais défices de eficiência e de equidade que atravessam a nossa sociedade sem remeter para as questões de igualdade de oportunidades, para o papel que nesses défices desempenha aquilo que muitas vezes é designado pelo ‘elevador social’.

Mas este estudo ocorre igualmente após um período de profunda crise económica e social onde as questões da mobilidade ganharam uma relevância acentuada. Uma das leituras mais preocupantes dessa crise prende-se com uma clara inversão de expectativas em relação à qualidade da vida das novas gerações.  Contrariando uma tendência com décadas generalizou-se a ideia de que pela primeira vez o bem-estar das novas gerações irá ser pior do que o das gerações que as procederam. Ainda não existem os dados necessários para validar ou invalidar esta leitura, mas quando eles existirem as questões da mobilidade analisadas neste estudo da Teresa revelar-se-ão imprescindíveis.

Um outro aspecto que gostaria de sublinhar em relação a este estudo prende-se com o trabalho hercúleo de tratamento da informação estatística e de tratamento de microdados que a equipa liderada pela Teresa teve que desenvolver para realizar este estudo. Quem lê o estudo dificilmente se apercebe da quantidade enorme de informação que foi necessário processar, modelizar e interpretar.  É preciso ter passado por ‘aventuras’ semelhantes para dar o devido valor ao imenso trabalho que está ‘escondido’ por trás das mais de 140 páginas deste relatório.

Um outro aspecto que gostaria de salientar como inovador do trabalho agora apresentado prende-se com a coragem que os autores tiveram para trazer a analise da mobilidade social em Portugal para o ‘campo da economia’. Tradicionalmente este tipo de estudos tem estado no nosso país preferencialmente no campo de outras ciências sociais, muito encostado à noção de classes sociais, e raramente sujeitos à lupa e à caixa de instrumentos dos economistas. O estudo agora apresentado é claramente um estudo económico com tudo o que isso tem de positivo mas também de limitativo como terei oportunidade de discutir mais à frente.

Feitas estas observações genéricas sobre a importância deste trabalho permitam-me fazer três reflexões que a leitura do estudo da Teresa um suscitou, que são transversais ao conjunto do trabalho agora apresentado e que não minha opinião não são completamente esclarecidas no texto. Se a Teresa achar que são relevantes gostaria de ouvir a sua opinião sobre as mesmas.

A primeira reflexão tem a ver com a relação entre mobilidade social e desigualdade

Um dos aspectos mais fortes do estudo é a demonstração de que quer a mobilidade inter-geracional quer a mobilidade intra-geracional é significativamente mais baixa em Portugal que no conjunto dos países da UE. Por outro lado, constata-se que Portugal é igualmente um dos países com maiores níveis de desigualdade económica na Europa.

Seria interessante levar mais longe esta discussão sobre a importância da mobilidade (ou da sua ausência) na desigualdade social no nosso país.

Deixem-me concretizar. O estudo refere (na página 134) que entre 2014 e 2005 a mobilidade reduziu a desigualdade em Portugal em 2,2% em Portugal e de 5,4% na UE. Ou seja, atribui-se explicitamente um papel equalizador à mobilidade social. Será legitimo afirmar que uma maior mobilidade (ascendente) tem um maior efeito equalizador?

Seria por exemplo interessante perceber a nível europeu que tipo de associação existe entre níveis de desigualdade e níveis de mobilidade social.

A segunda reflexão tem a ver com a relação entre mobilidade social e crescimento económico

O estudo constata que ao longo do período analisado o rendimento disponível das famílias teve um crescimento até 2009 passando a partir daí por um período de quebras de rendimento que se acentuou ao longo da presente crise, em particular em 2010-2011.

Ao analisar a mobilidade intra-geracional o estudo constata (página 105) que entre 1993 e 2000, a tendência foi sobretudo para uma diminuição da mobilidade. Já entre 2003 e 2013, salvo oscilações, registou‑se sobretudo um aumento.

Talvez se justificasse uma análise mais incisiva entre o nível e o tipo de crescimento dos rendimentos e o nível e o tipo de mobilidade social.

O crescimento económico favorece ou dificulta a mobilidade social? Ou mais importante do que o nível do crescimento é o tipo de crescimento (tendo nomeadamente em conta o que se passa ao longo dos vários decis).

A terceira reflexão tem a ver com a relação entre mobilidade salarial e a mobilidade associada ao conjunto dos rendimentos

Parece-me que seria muito interessante uma leitura cruzada dos resultados dos capítulos 3 e 4 no que concerne à mobilidade intra-geracional. Estudos sobre a desigualdade em Portugal salientam que as dinâmicas de desigualdade não são coincidentes no tempo e no tipo de determinantes da desigualdade quando analisamos a desigualdade salarial e a desigualdade do rendimento familiar. Passa-se o mesmo com os diferentes tipos de mobilidade?

Feitas estas reflexões mais globais e transversais que a leitura do estudo me suscitou gostaria de colocar algumas questões pontuais.

A primeira questão prende-se com a analise do capítulo 2 (mobilidade inter-geracional).  Nesta área específica uma visão exclusivamente económica parece-me tão limitativa como, por exemplo, uma abordagem exclusivamente assente na visão dos sociólogos ou de outra qualquer ciência social. É claramente uma temática que apela a uma abordagem multidisciplinar. A ‘caixa de ferramentas do economista’ é indispensável, mas não podemos ficar confinados à sua utilização. E isso nota-se essencialmente na capacidade de fazer uma leitura integrada dos resultados obtidos

Um outro aspecto que me suscitou algumas dúvidas tem a ver com aquilo que poderei designar por envolvente macro da análise da mobilidade. Por exemplo, o estudo desenvolve uma analise exaustiva da comparação do nível de educação entre pais e filhos. Mas em nenhuma parte se refere a envolvente legislativa que ao longo dos anos alterou o ensino obrigatório e os dados macro da participação da população nos diferentes graus de ensino. Nem sempre é fácil distinguir o que é o trend da evolução dos níveis educativos do conjunto da população do que são processos individuais de ascensão social por via da educação.

Note-se que o mesmo nível de instrução (o mesmo grau de educação obtido) pode significar ao longo do tempo coisas diferentes em termos de estatuto social e económico. Basta pensar nas alterações que se tem verificado no premium do ensino superior (licenciatura) nas últimas décadas. 

Um outro exemplo desta não consideração da envolvente macro acontece no caso da observação das profissões. Por exemplo, quando se refere a mobilidade associada a profissões como a agricultura ou pesca não se pode omitir completamente o forte decréscimo da população activa que exerce essas profissões no conjunto do país.

Obviamente que a não consideração desta envolvente macro da análise da mobilidade não invalida os principais resultados obtidos. Mas a sua consideração permitiria precisar alguns desses resultados.

Devo confessar que gostei muito da análise do capítulo 3 (Mobilidade intra-geracional dos rendimentos familiares), talvez porque é aquele que mais directamente se aproxima das minhas áreas de investigação.

O único aspecto em que não estou convencido, isto é que permaneço com grandes dúvidas, é quanto às vantagens de truncar a analise retirando os percentis de topo e da base. Percebo as razões da redução dos valores extremos, mas isso pode omitir elementos de mobilidade que pode ser importante perceber. Por outro lado, a minha experiencia do INE diz-me que esses valores extremos são sujeitos a um controle de qualidade superior quando da produção dos dados pelo que, se calhar, são menos susceptíveis de apresentar erros. Um outro aspecto é a de quando se truncam os extremos e, simultaneamente, se utiliza uma variedade de índices de mobilidade os efeitos dessa truncagem não é idêntico na estimação dos vários índices (dada a sua diferente sensibilidade aos extremos da distribuição) o que pode induzir leituras menos fieis.

Para terminar gostava de sublinhar que os comentários e sugestões feitos atrás não colocam em causa a apreciação extremamente positiva que faço do texto apresentado pela Prof.ª Teresa Bago d’Uva. Penso que é uma peça importante no puzzle que é explicar a mobilidade social em Portugal. Os autores e a Fundação Francisco Manuel dos Santos estão de Parabéns com a publicação deste estudo.

Justiça entre Gerações – Perspetivas interdisciplinares
(Por Paulo Côrte-Real)

Começo por agradecer à Fundação Francisco Manuel dos Santos – e aos organizadores (Jorge Pereira da Silva e Gonçalo Almeida Ribeiro) e às autoras e autores da obra “Justiça entre gerações”, que tenho o prazer de apresentar, comentando.

Tratando-se de um livro que cruza algumas áreas do saber, ainda que com alguma primazia para o Direito, a minha leitura poderá ter um eventual enviesamento inerente à minha formação, na área da Economia – e também do meu percurso enquanto ativista pelos Direitos Humanos, contra a discriminação e pela igualdade de género.

Não pretendo ser exaustivo na descrição dos vários capítulos desta obra, até porque o tempo é limitado e porque se pretende sobretudo incentivar a leitura mas tentarei fazer uma breve súmula do que li e tentar, no comentário, acrescentar algum contributo para uma obra que reúne contributos de várias pessoas com diferentes visões.

Começo com uma questão fundamental também no debate económico: a inconsistência dinâmica de planos ótimos. Um exemplo simples, não relacionado com a questão da justiça intergeracional: se um banco central não tem uma regra (inviolável) de emissão controlada de moeda, as expectativas de inflação ajustam-se à possibilidade de intervenção através da política monetária, gerando inflação; ou seja, é possível que um plano ótimo de longo prazo falhe por causa de opções disponíveis no curto prazo. Conhecido como o modelo de Barro e Gordon mas na realidade da autoria de Kydland e Prescott, este é um exemplo do debate que também na teoria económica demonstra a tensão entre credibilidade e flexibilidade.

Esta questão aponta portanto para o que Camões chamava o “querer estar preso por vontade” – ou seja, a necessidade de regras que impeçam um comportamento discricionário (que não é ótimo no longo prazo). E essa é também uma das questões chave abordadas nesta obra: até que ponto nos devemos prender, por vontade – até na própria Constituição - face a gerações futuras, na interação estratégica que existe entre as diferentes gerações.

As respostas variam – mas começam na Constituição, espaço por excelência de regras que limitam a discricionariedade. Como refere Jorge Pereira da Silva, a justiça intergeracional deverá desde logo, e eminentemente, uma questão constitucional, na aceção da Constituição enquanto “pacto de vocação duradoura” e, portanto, pacto de gerações.

No entanto, a inclusão da preocupação com as gerações futuras na Constituição levanta várias dúvidas – sobretudo no plano jusconstitucional.

Há de facto uma complexidade fundamental na noção de justiça intergeracional (começando pelo próprio conceito de ‘geração’), desde logo com o paradoxo da não-identidade. Como afirma Elsa Vaz de Sequeira no capítulo inicial, mesmo que seja possível argumentar no sentido da existência de sujeitos (de direito) quando se fala de gerações futuras, há a dificuldade associada ao objeto de eventuais direitos: como proteger os direitos de personalidade de pessoas que ainda não existem? A autora opta pela defesa da existência de um dever genérico de respeito, inerente à própria natureza do texto constitucional.

Também Jorge Pereira da Silva argumenta que, para além da já existente referência constitucional explícita a questões de ambiente e recursos naturais “com respeito do princípio de solidariedade entre gerações”, os direitos de gerações futuras estão já neste momento salvaguardados no âmbito dos direitos fundamentais cuja intemporalidade obriga à sua defesa por parte do Estado (tomando em consideração os demais princípios constitucionais) – um pouco na senda do que afirma Miguel Morgado, que defende a continuidade e portanto a lógica de futuro inerente a uma comunidade política.

Seria em todo o caso discutível o grau de prioridade a gerações presentes e futuras, incluindo a questão de um eventual desconto do futuro, à semelhança do debate axiomático presente na teoria económica.

Ainda com base na comparação com outros textos constitucionais, defende-se, assim, também a não necessidade de inclusão explícita da expressão “direitos de gerações futuras” (ou da criação do conceito de “geração”) na Constituição.

Por sua vez, Catarina dos Santos Botelho, defendendo que não deve haver nem excesso nem défice de tutela, recomenda uma revisão constitucional no sentido de reforçar a proteção das gerações futuras (permitindo o “garantir” ou o “promover” como alternativas com diferente grau de força).

Prossegue um estudo das possibilidades de tutela das gerações futuras procurando destrinçar tempo longo e tempo curto e problematizando também o eventual desconto temporal mais ou menos crescente do nosso futuro (que é também uma questão patente na Economia, com base aliás na possível miopia de quem decide no presente), proteção individual vs. coletiva, e concluindo por um conjunto de propostas mais dirigidas como a inclusão obrigatória de mais pessoas jovens nas listas para a Assembleia da República ou mesmo a criação de uma instituição específica para operacionalizar a defesa de gerações futuras, na lógica de uma ombudsperson ou Provedoria (uma proposta que recuperarei mais à frente).

Gonçalo de Almeida Ribeiro, face à imprevisibilidade do futuro também em termos tecnológicos mas também face a noções de justiça que são, elas próprias, muito diversas, como enfatiza André Santos Campos – e que evoluem – elas próprias, as noções de justiça - também ao longo do tempo, afirma que é desafiante a justificação de qualquer alteração constitucional no sentido de uma maior explicitação da proteção de gerações futuras e no sentido de uma imperatividade. Em função do pluralismo de opiniões, o consenso alargado inerente a uma alteração constitucional seria difícil de obter. O autor admite, no máximo, a introdução de princípios intergeracionais por oposição a regras, ainda que, mesmo assim, apontando os riscos de eventuais maiorias qualificadas conjunturais (tratando-se de uma questão de conteúdo e não de organização do sistema).

Se é um facto que a explicitação altera tipicamente a eficácia da proteção, porque, como se viu, o Direito é particularmente propenso ao dissenso na interpretação e nas conclusões, pode ainda assim procurar-se outra solução: como menciona também André Santos Campos, a imposição de deveres a gerações presentes pode ser uma forma alternativa de garantir o reconhecimento dos direitos de gerações futuras. Faltará assim, sobretudo, dar conteúdo a esse(s) dever(es) já existente(s) na Constituição.

E se esta obra não pretende esgotar a discussão jusconstitucional sobre a proteção de gerações futuras, é ainda assim evidente que, como também refere Gonçalo de Almeida Ribeiro, vivemos efetivamente sempre no risco do imediatismo de decisões que afetam também gerações futuras sem representatividade eleitoral, sem possibilidade de responsabilização de quem toma as decisões políticas – e sem haver precisamente uma legitimidade maioritária das decisões, o que decorre da própria não contemporaneidade de gerações. É um pouco por esta razão que Miguel Nogueira de Brito advoga sobretudo limites à revisão constitucional por via referendária, sobretudo em questões que digam respeito às gerações futuras.

No fundo, parece-me assim que, mais até do que a inconsistência dinâmica de planos ótimos, o que está em causa é mesmo a otimalidade dos planos, por não haver (nem ser possível) a decisão por parte de um mesmo sujeito. É a tensão entre a continuidade da comunidade política e a não contemporaneidade de gerações que leva a que o que é ótimo hoje possa não o ser amanhã, seja pela (falta de) consideração das gerações futuras, seja pela incerteza relativamente às possibilidades tecnológicas do amanhã, seja pela enorme variabilidade das noções de justiça – hoje, amanhã e entre o hoje e o amanhã. Há efetivamente aqui, e sobretudo, um problema de agência e de risco moral: decidimos hoje em várias matérias que afetarão gerações futuras. A teoria dos contratos explica-nos como proceder: na partilha de risco e na atribuição de incentivos (possivelmente negativos) que garantam um alinhamento de objetivos entre gerações.

É hoje possível identificar vários problemas elencados e densificados em capítulos com origem em diferentes ramos do saber, que apontam também para possíveis soluções que garantam, pelo menos, o cumprimento dos deveres das gerações presentes e que, de alguma forma, contratualizem esta relação entre gerações.

Desde logo, no plano ambiental, Bruno Pinto (FCUL) introduz a noção e medida de sustentabilidade ecológica, relacionada com os limites do crescimento, com a pegada ecológica, ou com a avaliação de ecossistemas, elencando ameaças: da destruição de habitats naturais às alterações climáticas, passando pela sobreexploração de espécies e pelo problema das espécies exóticas invasoras, e prosseguindo pela degradação do solo, ou a escassez de água. A solução que o autor aqui preconiza é a reforma continuada e comprometida para a sustentabilidade, evitando uma eventual mudança mais violenta num momento de ameaça.  

É aliás nesta área do ambiente que Carla Amado Gomes apresenta, defende mas também problematiza a precaução como “novo paradigma de decisão num cenário de ciência incerta”, que alerta para a necessidade de avaliar e gerir dinamicamente o risco tecnológico com a identificação de efeitos potencialmente lesivos, em contexto de incerteza e controvérsia, através de uma análise de risco com base nos melhores dados científicos disponíveis. Ainda assim, a autora, que refere que o risco (ou, pelo menos, a sua perceção) se globalizou, alerta para o facto de a precaução encerrar em si própria riscos, como o do sacrifício de liberdades ou da estagnação. Assim, a partilha ótima de risco entre gerações admitirá algum nível de aplicação da precaução, mas sempre com limites.

Já face às empresas, Evaristo Mendes reproduz e analisa as atuais hard laws e soft laws existentes relativas a modelos de governança societária, mostrando que estes não estão, em geral, pensados para promover a justiça intergeracional. As lacunas identificadas são precisamente no âmbito da proteção de gerações futuras em termos de saúde, ambiente e qualidade de vida. Ainda assim, o autor defende que a leitura face à Constituição seria suficiente para garantir alguma defesa das gerações futuras; eu diria que evidencia sobretudo a necessidade de olhar para novos modelos de governança que a incorporem conscientemente.

Aliás, também no campo do Direito do Trabalho, António Nunes de Carvalho frisa que a conexão entre tutela e subordinação jurídica está agora afetada pela tensão entre regras e discricionaridade e pela tensão entre agência coletiva e individual, sendo que ambas estarão mais presentes entre gerações. Apontando-se a dificuldade na definição de geração, identifica-se ainda assim a geração mais jovem como sendo a que tem menos acesso a contratos de trabalho e a geração mais velha como tendo menos acesso a um (novo) emprego.

A proposta do autor assim o alargamento uniforme do benefício da proteção legal  através de uma reconfiguração do próprio conceito de subordinação tornando-se a justiça intergeracional o parâmetro de avaliação e revisão do atual ordenamento jurídico nesta área.

A diversidade dos campos de ação já referidos (ambiente, modelos de governança, trabalho) parece assim reforçar a necessidade de uma visão integrada que poderia efetivamente ser promovida de forma mais eficaz por uma Procuradoria (ou ombudsperson), defendida por Catarina dos Santos Botelho, ainda que com as dificuldades inerentes à limitação da possibilidade de identificação dos interesses de possíveis gerações futuras noutras áreas.

No plano da economia, José Albano Santos apresenta-nos uma sistematização particularmente conseguida da discussão histórica e filosófica sobre a ética intergeracional em conexão também com a natureza e o propósito da dívida pública.

Começando por analisar o debate sobre a responsabilidade de gerações atuais face a gerações futuras (com a justaposição e a oposição de teses de diferentes áreas, incluindo a economia), prossegue para, face ao atual crescimento da dívida pública em diferentes países, recuperar a evolução da reflexão filosófica sobre o seu papel e sobre os seus eventuais custos e benefícios, incluindo, naturalmente, as teses de referências fundamentais na história do pensamento económico (de Smith e Ricardo até à Escola Histórica Alemã, e continuando com Keynes, Buchanan, Barro e Musgrave).

Uma vez identificado o problema de agência associado às consequências de decisões atuais em gerações futuras, prossegue-se uma tentativa de apuramento do que seriam axiomas desejáveis da dívida pública. Desde logo, com a separação entre despesa pública corrente e investimento público (procurando também densificar a definição dessa separação e, no fundo, recentrar o debate na questão da qualidade da despesa pública) e, no fundo, oferecendo bases filosóficas para o trabalho teórico e axiomático que tem sido desenvolvido na área da Economia; mas também, e cumulativamente, com a separação entre dívida interna (em que quem detém a dívida é também quem irá amortizá-la) e externa (em que não existirá essa correspondência), alertando em particular para as questões de equidade subjacentes a esta.

Trata-se de um capítulo que me parece fundamental na análise da dívida pública como problema intergeracional – e cuja leitura deve preceder qualquer proposta de tomada de decisão política nesta área.

Maria Oliveira Martins problematiza o equilíbrio entre gerações enquanto eventual prioridade na definição da despesa pública, com um enfoque claro na doutrina jusconstitucional. Nesse âmbito, afirma a existência de uma atual prioridade ao presente, com os requisitos de salvaguarda de “mínimo de existência condigna” e de concretização de “direitos, liberdades e garantias”, ainda que a mesma prioridade já não seja clara face à noção de “Justiça Social” que encontra outros valores constitucionalmente protegidos como potenciais contrapontos (sendo portanto muito menos clara a prioridade à geração presente).

Problematiza-se ainda o papel do cotejo de interesses de gerações futuras e presentes no sentido da atribuição de prioridade à cooperação internacional e a uma lógica integrada de preocupação distributiva. A necessidade de ir mais além na noção de justiça (pensada também entre países e dentro de cada país) é uma questão que me parece particularmente relevante e à qual retornarei.

Ainda assim, é evidente que a questão da sustentabilidade das finanças públicas é portanto, relevante do ponto de vista da justiça entre gerações, incluindo-se aqui, e inevitavelmente, a questão da sustentabilidade da segurança social. Como refere Nazaré da Costa Cabral, a sustentabilidade da segurança social não implicará necessariamente justiça entre gerações, mas não há dúvida de que a natureza de sistemas “pay as you go” materializa a solidariedade intergeracional e a sua sustentabilidade face à evolução demográfica e económica é relevante para promover uma justiça entre gerações.

Quanto às propostas de alterações no sentido dessa sustentabilidade, a autora marca que esta é, desde logo, uma questão que obriga à atenção do Direito, uma vez que pôr em causa direitos adquiridos para as gerações presentes significa potencialmente transformá-los em direitos em constante formação, redundando potencialmente na transformação de direitos em não-direitos. Problematiza-se ainda a escolha entre um regime de repartição e um regime de capitalização, sendo que os problemas demográficos e económicos têm que ser cotejados com a eventual mercantilização do risco social. Ainda assim, aponta-se para a dificuldade no financiamento para uma eventual transição de sistemas – que, tal como a ‘legacy debt’, tem um potencial de injustiça na distribuição de custos no tempo. É que, no fundo, há uma injustiça de base, dado que a primeira coorte de pessoas beneficiárias do sistema terá tido um benefício líquido face ao sistema contributivo (ainda que possa ter feito transferência de parte desses benefícios através de heranças) e há portanto uma dívida que inevitavelmente terá que ser paga por quem prossegue o sistema.  

Para uma melhor partilha de risco entre gerações, a autora sugere alguma transição entre um sistema de benefício definido para um sistema de contribuição definida (mecanismos automáticos de ajustamento), recuperando especificamente a proposta de Musgrave para ajustar contribuições com base na variável demográfica e benefícios com base na económica (produtividade) mantendo o rácio de benefícios per capita de pensionistas em relação a rendimentos per capita de quem está no ativo.

Mas há mais propostas: uma possível resposta ao problema passa, como diz Gonçalo Saraiva Matias, pela tentativa de resolução da questão demográfica, nomeadamente através da gestão dos fluxos migratórios (prevendo-se a existência de 9.7 mil milhões de pessoas no mundo em 2050, é de facto questionável se se deve fazer incidir sobre a natalidade a política de resolução do problema demográfico) e de uma adequada política migratória (nomeadamente de atração de talento e de retenção do “brain drain”). O autor defende que só a atração de imigrantes permite essa sustentabilidade, seja no plano das relações familiares, no cuidado a pessoas idosas dependentes ou, no plano macro, na sustentabilidade das finanças públicas, dos sistemas de segurança social e, em geral, do próprio estado social. Face à xenofobia que continua a ser promovida com argumentos que vão da segurança nacional à saúde pública, resta a aposta na educação e a formação contra esse preconceito como forma de garantir precisamente a sustentabilidade no plano demográfico – e no plano económico, que está intimamente relacionado, como se viu, com o plano demográfico.

Deixo esta proposta para o fim, porque está relacionada com a proposta que gostaria de fazer.

Numa obra que apresenta diversas propostas para resolver os vários problemas de agência identificados – e para cumprir, no fundo, um requisito constitucional possivelmente já presente, o contributo é tanto mais rico quanto mais baseado na interdisciplinaridade: com enfoque no Direito, há contributos da Filosofia, Economia, Biologia, Ciência Política. Ainda assim, há outras áreas do saber que julgo terem potenciais contributos relevantes, da Sociologia à Psicologia Social, passando pela Antropologia e, sobretudo a História.

É que se é difícil equacionar a noção adequada de justiça intergeracional, parece-me ainda mais difícil fazê-lo sem olhar também para a justiça intrageracional e para a perpetuação de injustiças ao longo de gerações por oposição à sua correção. Não existem apenas potenciais gerações futuras, existiram gerações passadas. E com as noções de justiça de que dispomos hoje, injustiças que identificamos no passado que têm consequências no presente deveriam merecer atenção especial. Essa parece-me, assim, a maior lacuna desta obra – e que justificaria atenção no futuro, para se poder abordar a justiça entre gerações de forma mais completa.

Desde logo, no plano económico, e dada a lentidão da mobilidade social em Portugal, injustiças distributivas passadas obrigariam a uma ação corretiva mais forte no presente (nomeadamente a nível da política fiscal, também no campo da sucessão e doação).

Mas há outros campos que exigem reparação: André Santos Campos faz a alusão a vítimas de Holocausto ou  descendentes de pessoas escravizadas – e pessoas que são, ainda hoje, racializadas. Por sua vez, a sugestão que Gonçalo de Almeida Ribeiro faz a dada altura de olharmos para as gerações futuras como uma minoria poderia ser interessante, porque hoje temos precisamente uma forma mais justa também de olharmos para as minorias. As nossas noções presentes de justiça permitem-nos identificar a desigualdade com base na pertença a diferentes categorias identitárias que são alvo de discriminação; e todo um passado de desigualdade que devemos analisar, porque se prolonga pelo presente, com sujeitos de direito (e objetos de direito) bem identificáveis.

A justiça intergeracional pode, por isso, obrigar à ação afirmativa no sentido de promover não só uma igualdade de oportunidades mas também uma efetiva reparação, reforçando a urgência de mais medidas que não só combatam a desigualdade do presente (o que é efetivamente um imperativo constitucional) mas que para além disso compensem também de alguma forma o passado.

E vale a pena enfatizar aqui, em particular, o género, que sempre determinou desigualdade. Falar em justiça entre gerações implica medidas bem mais musculadas para corrigir as injustiças desse passado tão presente. Nesse sentido, embora esta conferência se intitule “De pais para filhos”, seria mais interessante, neste prisma, pensar na justiça que se faria sobretudo de filhos para mães (no sentido de promover a reparação) e sobretudo de pais para filhas (no sentido da ação afirmativa).

A justiça entre gerações não se faz apenas face ao futuro mais incerto, mas também (e talvez sobretudo) face ao passado – e à forma como nos apercebemos bem hoje das injustiças que já foram, mas que ainda têm consequências no nosso presente.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal