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Portugal e Espanha têm condições para liderar a transição energética europeia e captar oportunidades de industrialização verde, graças a recursos renováveis abundantes, capacidade técnica e instituições robustas. Esta é a principal conclusão do 4º policy paper realizado em parceria com a Brookings Institution. A investigação alerta, contudo, que há...


O ensino profissional está a baixar as taxas de abandono escolar, a promover a inclusão social e a dinamizar o tecido empresarial português. O novo...
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Depois da Crise Energética: Respostas Políticas na Península Ibérica

Embora dependessem menos dos combustíveis fósseis russos do que outros Estados-Membros da União Europeia (UE), Portugal e Espanha também sofreram com o aumento abrupto dos preços da energia e com a instabilidade do mercado energético provocados pela crise energética europeia de 2022.
Ambos os países reagiram prontamente à crise, negociando medidas de política energética ao nível da UE – entre as quais, o «mecanismo ibérico», a aplicar aos mercados de eletricidade da Península Ibérica, que limitou temporariamente o preço do gás utilizado na produção de eletricidade – e avançando com várias outras medidas internas para reduzir os preços da eletricidade.
Aderiram também de imediato às sanções da UE contra a Rússia, ao mesmo tempo que aceleraram a implementação das energias renováveis, com vista a aumentar a sua autonomia estratégica.
Devido aos seus terminais de gás natural liquefeito (GNL) e às importações dos Estados Unidos e da Nigéria, a Península Ibérica resistiu à crise e apoiou a França através da exportação de gás e eletricidade em níveis nunca antes vistos. Caso houvesse maior capacidade de interligações, a Península Ibérica teria contribuído mais acentuadamente para a segurança energética da UE.
A expansão da interligação entre a Península Ibérica – muitas vezes descrita como uma ilha de energias renováveis – e o resto da Europa tornou-se uma prioridade para a autonomia estratégica e para a competitividade da UE.
O presente policy paper procura alavancar as aprendizagens e as oportunidades criadas pela transição energética que está a decorrer em Portugal e Espanha, bem como das tensões geopolíticas e consequente resposta política da UE. As suas conclusões podem ser resumidas da seguinte forma:
- Apesar da reduzida dependência inicial da Península Ibérica em relação à energia russa, a sua segurança energética foi afetada pela dinâmica volátil do mercado, pela seca prolongada e pelas alterações geopolíticas no Norte de África. Espanha continua a importar GNL russo, ao abrigo de contratos antigos de longo prazo, que, se as medidas da UE forem devidamente aplicadas, deverão ser progressivamente eliminados até 2027. Prevê-se que o GNL dos EUA desempenhe um papel importante na substituição do abastecimento russo, abrindo novas vias para a cooperação transatlântica no domínio da energia e das infraestruturas.
- O mercado energético da Península Ibérica permanece pouco interligado ao mercado francês e, consequentemente, ao da UE. Os projetos ibéricos atuais ficam aquém dos objetivos de interligação da UE, limitando o papel da Península Ibérica no que se refere ao reforço da segurança energética europeia e à descarbonização. A existência de melhores interligações teria permitido uma maior contribuição ibérica durante a crise energética – uma conclusão de caráter estratégico que os decisores políticos não devem subestimar.
- Os cidadãos portugueses e espanhóis preocupam-se com as alterações climáticas e, de um modo geral, apoiam a transição energética, que também veem como uma oportunidade económica. Esta aceitação social oferece alguma vantagem competitiva para a captação de oportunidades na indústria verde. No entanto, para manter esta dinâmica, será necessário um maior envolvimento com as comunidades locais, uma comunicação clara ao longo do ciclo de vida dos projetos e uma distribuição justa dos benefícios económicos gerados.
- Devido à abundância de recursos renováveis, aos conhecimentos técnicos e a instituições consolidadas, Portugal e Espanha estão bem posicionados para beneficiar da transição energética. Embora o Plano Nacional de Energia e Clima português e o Plano Nacional Integrado de Energia e Clima espanhol possam não atingir plenamente os seus objetivos, ambos definem um rumo claro para a eletrificação e para as energias renováveis. Para ambos os países, a transição representa uma oportunidade industrial, fomentada por tendências como o nearshoring [1] e o greenshoring [2].
- Esta transformação ambiciosa do sistema energético também obriga a resolver os principais constrangimentos, sobretudo a capacidade da rede e a sua digitalização, a capacidade de armazenamento, os serviços auxiliares de sistema e a flexibilidade do lado da procura, bem como os licenciamentos, os incentivos, os sinais de preço e o apoio local.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, no início de 2022, representou um ponto de viragem nos mercados energéticos, expondo as vulnerabilidades dos sistemas energéticos europeus, muito dependentes de combustíveis fósseis. Embora se tenha sentido um impacto imediato – no aumento dos preços e na incerteza quanto ao aprovisionamento –, a crise também levou a um esforço da União Europeia (UE) no sentido da diversificação energética e de um futuro com baixas emissões de carbono.
Em termos europeus, a Península Ibérica, embora menos diretamente exposta à Rússia, mas ainda assim afetada pela crise energética, reagiu à turbulência de uma forma própria. O presente policy paper analisa os fatores que deram origem à resposta ibérica e lança um olhar sobre o futuro, identificando as oportunidades e as áreas fundamentais de ação política.
Para explicar o impacto da crise energética de 2022 e as medidas políticas que se tomaram na Península Ibérica para a superar, este documento começa por apresentar o cabaz energético português e espanhol, incluindo as suas importações de energia russa, no período imediatamente anterior à crise.
A secção seguinte analisa os impactos da crise e a forma como esta coincidiu com o encerramento do Gasoduto Magrebe-Europa, proveniente da Argélia, e com uma grave seca, que afetou a produção de energia hidroelétrica em ambos os países.
Em seguida, o documento centra-se nas políticas energéticas através das quais Portugal e Espanha responderam à crise, incluindo mecanismos de estabilização de preços, aplicação de sanções, acordos sobre novas interligações e diversificação do fornecimento, bem como na forma como essas respostas transformaram o sistema energético da Península Ibérica.
Por último, o policy paper explora o caminho a seguir, apresentando os planos energéticos e climáticos português e espanhol, as perspetivas relativamente à criação de novas interligações elétricas e de hidrogénio, bem como as estratégias de industrialização verde em ambos os países. Na conclusão, resumem-se as principais mensagens sobre o mercado energético da Península Ibérica após a crise.
No início da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia – e antes da crise dos mercados energéticos que se seguiu – o cabaz energético da Europa ainda pendia claramente para os combustíveis fósseis. De facto, em 2021, o petróleo, o gás natural e o carvão representavam 70% do cabaz energético da UE (figura 1). Portugal e Espanha estavam próximos da média da UE (67% e 69%, respetivamente).
No entanto, registavam-se algumas diferenças na composição do cabaz: por comparação com o conjunto dos países da UE, Portugal e Espanha dependiam mais do petróleo e menos do gás natural e do carvão; no caso do carvão, a sua eliminação progressiva pela Península Ibérica reduziu o volume das importações para níveis negligenciáveis [4].
No caso específico de Portugal, as energias renováveis representavam 30% do cabaz energético, a sexta quota mais elevada da UE, onde a média do agregado de países ainda se situava nos 17%.
O cabaz de eletricidade da Península Ibérica também pendia para as fontes renováveis e de baixo teor de carbono nacionais: em 2021, 60% da eletricidade de Portugal provinha de energias renováveis, enquanto a eletricidade de Espanha era composta por 50% de energias renováveis e 20% de energia nuclear [5].
As importações de energia cobriram uma parte substancial da procura interna europeia. Na UE, 56% das necessidades energéticas foram supridas através das importações, principalmente de produtos petrolíferos, gás e combustíveis sólidos. Este valor foi ainda mais elevado em Portugal e Espanha, atingindo 67% e 69%, respetivamente.
No entanto, a Península Ibérica dependia menos da energia russa: em 2020, apenas 5% da energia bruta disponível em Portugal e 8% em Espanha [6] tinha origem na Rússia (figura 2). A título comparativo, este valor era de 24% para o conjunto dos países da UE, sendo a Rússia o principal parceiro comercial nas três principais fontes de energia primária.
A menor dependência de Portugal e de Espanha em relação à Rússia e a sua estratégia de diversificação da origem do GNL, a par de um forte empenho político na utilização de fontes de energia renováveis, fizeram com que estes países se encontrassem em melhor posição para resistir ao impacto da invasão russa da Ucrânia e à consequente turbulência nos mercados energéticos.
A crise energética desencadeada pela invasão da Ucrânia pela Rússia expôs os mercados europeus a uma volatilidade significativa dos preços, aumentando a inflação em todo o continente. O Índice Harmonizado de Preços no Consumidor subiu 9,2% na UE, 8,3% em Espanha e 8,1% em Portugal, em grande parte devido à subida dos preços da energia.
Embora Espanha e Portugal importassem relativamente pouca energia diretamente da Rússia, devido à integração dos vários mercados energéticos, não puderam ficar imunes ao aumento dos custos da eletricidade, do gás natural e dos combustíveis rodoviários.
O Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL) viu os preços médios do mercado diário subirem para 167 euros por megawatt-hora (MWh) em 2022 – um valor 50% mais alto do que em 2021 e quase 390% acima dos níveis de 2020, e que foi alimentado pela subida vertiginosa dos preços do gás natural.
No terceiro trimestre de 2022, o Mercado Ibérico do Gás (MIBGAS) registou um preço médio de 138 euros por MWh, uma subida de cerca de 50 euros por MWh face ao trimestre anterior e de 88 euros por MWh face ao trimestre homólogo.
Os preços da eletricidade para os consumidores domésticos e não domésticos em Portugal mantiveram-se abaixo das médias da zona euro, da UE e de Espanha.
Portugal entrou na crise energética com uma maior proporção de contratos de longo prazo com preço fixo no mercado grossista, o que contribuiu para uma maior estabilidade dos preços da eletricidade.
Em contrapartida, Espanha registou um pico de preços da eletricidade no final de 2022, antes de estabilizar em 2023, embora os preços da eletricidade tenham permanecido acima dos níveis anteriores à guerra. A tarifa regulada de eletricidade em Espanha, que se aplica à maioria dos agregados familiares, foi indexada diretamente aos preços grossistas intradiários por hora, o que a tornou altamente suscetível a uma volatilidade extrema.
No contexto da crise energética europeia, a Península Ibérica enfrentou dois grandes desafios: o encerramento do Gasoduto Magrebe-Europa (GEM) e uma grave seca, que reduziu a produção de energia hidroelétrica. O GEM, que fornecia 12 mil milhões de metros cúbicos (bcm, do inglês billion cubic meters) de gás da Argélia através de Marrocos, foi encerrado em novembro de 2021 devido às tensões entre a Argélia e Marrocos.
Estas circunstâncias forçaram a Península Ibérica a intensificar as importações de GNL e do gasoduto Medgaz, cuja capacidade aumentou de 8 bcm para 10,5 bcm. Esta mudança tornou a Península Ibérica mais dependente do GNL, fazendo subir os preços do gás e da eletricidade.
Embora se tenha mantido a segurança do abastecimento, a capacidade de importação por gasoduto e a diversificação foram afetadas. Marrocos foi o país mais penalizado, perdendo as taxas de trânsito e o acesso ao gás argelino. Em junho de 2022, o GEM foi invertido, de modo a transportar gás de Espanha para Marrocos.
O segundo impacto foi a seca. No auge da crise energética (2021 e 2022, figura 3), a produção hidroelétrica em Espanha e Portugal atingiu um dos seus níveis mais baixos desde 1990. Apoiada nas suas centrais a gás de ciclo combinado, nos terminais de GNL, na energia eólica e, cada vez mais, na energia solar, a Península Ibérica conseguiu manter um fornecimento estável de eletricidade, ao mesmo tempo que alcançou um recorde de exportações de eletricidade para França, cujas centrais nucleares se encontravam em níveis mínimos de produção, e para Marrocos, que também foi afetado pela seca e pelo encerramento do GEM.
A UE implementou várias políticas para enfrentar a crise energética, centrando-se em proteger os cidadãos da subida de preços, reduzir a dependência dos combustíveis fósseis russos, estabilizar os mercados energéticos e reforçar a segurança energética.
O Plano REPowerEU de 2022 deu prioridade à poupança de energia, à diversificação dos fornecedores e à aceleração da transição para as energias renováveis. Para apoiar estes objetivos, os Estados-Membros obtiveram mais financiamento através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, o que permitiu investir em infraestruturas energéticas, projetos de energias renováveis e eficiência energética.
A UE atuou simultaneamente em duas frentes: assegurar alternativas para o aprovisionamento de energia e garantir a segurança energética no interior do bloco europeu. No que diz respeito ao aprovisionamento, intensificou os esforços para diversificar a origem das importações de gás, aumentando significativamente as remessas de GNL oriundas dos Estados Unidos, Noruega e Qatar – com as importações provenientes dos Estados Unidos quase a triplicar em 2023 face a 2021.
Em matéria de segurança energética, a Comissão Europeia e os Estados-Membros chegaram a acordo sobre uma meta vinculativa, segundo a qual o nível de enchimento das instalações de armazenamento de gás deve ser de pelo menos de 90% até dia 1 de novembro de cada ano, assim garantindo reservas suficientes para o inverno, e estabeleceram metas (não vinculativas) para a redução do consumo de gás natural.
A UE também reforçou os mecanismos de solidariedade entre os Estados-Membros, de modo a facilitar a partilha de gás em caso de interrupções no abastecimento. Estas medidas contribuíram para atenuar a crise energética, estabilizar os mercados e acelerar a transição ecológica da UE, reduzindo significativamente a dependência das importações de energia russa e, simultaneamente, reforçando a resiliência energética a longo prazo.
Respostas em matéria de política energética na Península Ibérica
As características diferenciadas do mercado de eletricidade da Península Ibérica – baixas interligações com o resto do mercado europeu e elevada percentagem de energias renováveis – permitiram que fossem adotadas medidas políticas distintas e direcionadas em resposta à crise energética.
Uma iniciativa fundamental foi o Mecanismo Ibérico, concebido por Portugal e Espanha para desacoplar os preços da eletricidade e do gás natural nos mercados grossistas ibéricos [7]. Esta medida visou proteger os consumidores da volatilidade dos preços do gás e atenuar o impacto económico do aumento dos custos da energia, proporcionando estabilidade em tempo de crise.
Aprovado pela Comissão Europeia com base nas baixas interligações energéticas com o resto da Europa e na elevada percentagem de incorporação de renováveis na produção de eletricidade, o mecanismo definiu um limite máximo para o preço do gás natural utilizado na produção de eletricidade. Ao fazê-lo, limitou o preço de compensação diário no mercado da eletricidade nos casos em que o preço era fixado pelas centrais elétricas a gás.
Para garantir que não fossem financeiramente penalizados pela imposição de um limite de preço, os produtores de eletricidade a partir do gás foram compensados pela diferença entre o preço do gás sujeito a limite e o preço real de mercado. Os produtores de eletricidade que usavam fontes que não o gás (produtores inframarginais) viram as suas receitas potenciais reduzidas, uma vez que este limite máximo baixou o preço de equilíbrio do mercado. A medida serviu para reduzir os preços da eletricidade, aferindo-se a sua eficácia por comparação com casos sem nenhum mecanismo em vigor.
Em Portugal, onde há uma elevada percentagem de contratos a prazo no mercado grossista, o Mecanismo Ibérico permitiu estabilizar mais rapidamente os preços da eletricidade.
Em Espanha, conseguiu baixar os preços no mercado grossista de eletricidade (figura 4), apesar do aumento indireto do consumo de gás para produção de energia e das exportações de eletricidade a baixo custo para França. O mecanismo terminou a 31 de dezembro de 2023, não sendo já necessário, uma vez que os preços do gás tinham descido abaixo do limite máximo. A medida funcionou, e serve de salvaguarda em eventuais casos de stresse futuro.
Além disso, em Portugal, as reduções nas faturas de eletricidade financiadas pelas receitas do sistema elétrico (através da redução das tarifas de acesso às redes, resultante da aplicação do modelo regulatório em vigor, com medidas de estabilização incorporadas), apoiadas pelo orçamento de Estado, também contribuíram para conter o aumento dos preços da eletricidade.
Tanto em Portugal como em Espanha, o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e outros impostos relacionados com a eletricidade foram reduzidos. Em Portugal, essas reduções incidiram sobre as faturas de eletricidade, os preços dos painéis solares e outros equipamentos energeticamente eficientes; em Espanha, as reduções incidiram principalmente no IVA da eletricidade.
No que diz respeito ao gás natural, Portugal atribuiu subsídios diretos às empresas dependentes do gás natural (nomeadamente sob a forma de um mecanismo de seguro face a subidas do preço do gás natural acima de um patamar definido, gerando assim a necessária previsibilidade em contextos de incerteza) e aos agregados familiares vulneráveis. Foi também dada aos consumidores a opção de regressarem às tarifas reguladas, cuja eliminação gradual tinha sido anteriormente determinada. Espanha adotou medidas para proteger os consumidores, limitando o aumento dos preços das tarifas reguladas, reduzindo o IVA do gás natural e oferecendo apoio específico às famílias vulneráveis.
Além da eletricidade e do gás, a volatilidade dos preços do petróleo, com o aumento dos preços da gasolina e do gasóleo, também afetou os consumidores. De um modo geral, as tendências foram semelhantes em ambos os países, que concederam aos consumidores descontos financiados pelas receitas dos impostos e taxas, que cresceram significativamente devido ao aumento dos preços.
Estes acontecimentos evidenciam o impacto significativo que as perturbações do mercado energético tiveram sobre os consumidores da Península Ibérica e, em geral, sobre a dinâmica inflacionista, bem como o papel fundamental desempenhado pelas medidas de emergência adotadas como resposta. No entanto, tal como noutras partes da UE, alguns dos subsídios foram implementados sem ter em conta o nível de rendimento dos beneficiários ou o teor de carbono das fontes de energia, o que pode comprometer os princípios fundamentais de uma política fiscal verde e progressiva e tem, por isso, sido alvo de críticas. Continua a ser difícil encontrar um equilíbrio entre os diferentes objetivos das várias medidas políticas.
Diversificação das importações de petróleo e gás e aplicação de sanções
Por comparação com outros países da UE, os esforços de diversificação da Península Ibérica foram mínimos, uma vez que se partiu de um nível muito baixo de dependência do petróleo e gás da Rússia. Tanto Espanha como Portugal deixaram de importar petróleo russo em bruto muito antes do sexto pacote de sanções da UE, o qual proibiu oficialmente essas importações, enquanto o gasóleo e o fuelóleo foram progressivamente eliminados até ao final de 2022. O aprovisionamento de gás da Península Ibérica é relativamente diversificado, por via dos seus terminais de GNL, que permitem a regaseificação mais barata da Europa e permanecem geralmente subutilizados.
No entanto, o reforço das interligações energéticas da Península Ibérica com o resto da UE tornou-se uma prioridade. A capacidade do gasoduto de gás natural que liga a Península Ibérica a França cresceu em 20%, mas a capacidade inicial era muito baixa, o que limitou o seu impacto imediato.
Espanha contribuiu para a segurança energética a nível europeu, reativando as suas instalações de GNL em El Musel para operações de armazenamento e negociação de gás. Espanha também contribuiu para a estratégia de diversificação do gás em Itália, permitindo que o terminal de GNL de Barcelona fosse utilizado para operações de transbordo e que os navios de GNL mais pequenos reexportassem a carga para o terminal de Livorno.
Durante a crise energética de 2022, os Estados Unidos tornaram-se o principal fornecedor de gás natural para Espanha, um papel que a Argélia desempenhou durante mais de 30 anos.
Em 2024, a Argélia reassumiu a liderança entre os fornecedores de Espanha, bem à frente da Rússia e dos Estados Unidos. No entanto, desde a invasão russa da Ucrânia, Espanha aumentou as suas importações de GNL russo, que em 2024 representava 21% do fornecimento total de gás, em grande parte devido aos contratos de fornecimento de longo prazo com cláusulas de take or pay e às cláusulas de destino que as empresas de serviços energéticos espanholas assinaram antes da invasão.
Sem sanções específicas contra as importações de gás russo, estas empresas não podem invocar motivos de força maior para rescindir os contratos sem incorrerem em custos significativos de indemnização. No contexto de um maior escrutínio político e mediático noutros países da UE, os negociadores e as empresas de energia estrangeiros têm tirado partido da grande capacidade da Península Ibérica para regaseificar o GNL excedentário no sentido de importarem mais GNL russo.
O 14.º pacote de sanções da UE proíbe os serviços de transbordo de GNL russo nos portos da UE a partir de março de 2025, mas apenas nos casos em que o destino final da carga se situe fora da UE. Embora se espere que esta medida reduza os lucros da Novatek – o maior produtor independente de gás natural da Rússia –, esta circunstância poderá aumentar temporariamente as importações ibéricas de GNL, ao atrair cargas que anteriormente eram transbordadas através da UE – contanto que não sejam impostas mais restrições. Tanto Espanha como Portugal comprometeram-se a suspender as importações russas de GNL até 2027, em consonância com o Plano REPowerEU, mas o 16.º pacote de sanções não obteve aprovação unânime no Conselho Europeu.
A Argélia merece um comentário específico, porque é o principal fornecedor de gás natural de Espanha e há um crescente interesse nos seus recursos de gás natural. O impasse diplomático com este parceiro energético de Espanha – tradicionalmente, o parceiro principal – começou em março de 2022, quando o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, escreveu uma carta a Mohammed VI na qual considerava que a proposta marroquina para o Saara Ocidental (uma autonomia limitada) era o «ponto de partida mais sério, credível e realista» para resolver o conflito. A carta enfureceu a Argélia, mas os contratos de gás espanhóis com este país, válidos até 2030, foram objeto de uma renegociação bem-sucedida.
Em outubro de 2022, com os preços para entrega imediata de gás no mercado a ultrapassarem os 180 euros por MWh, a Sonatrach (empresa pública argelina) e a Naturgy (empresa espanhola de serviços energéticos) chegaram a um acordo para rever retroativamente os preços desse ano e prosseguiram as negociações sobre os preços a aplicar a partir de 2023.
O facto de o impasse diplomático não se ter repercutido nas relações energéticas foi um grande êxito para a segurança energética da UE e evidenciou a fiabilidade da Argélia como fornecedor de gás. Caso tivesse havido uma segunda rutura de fornecimento de gás no Mediterrâneo, logo após se ter perdido a maior parte dos fornecimentos de gás russo, o mercado europeu de GNL teria sido gravemente afetado, comprometendo-se a segurança do abastecimento de gás no continente.
Em Portugal, os Estados Unidos continuaram a ser o segundo maior fornecedor, mas a sua quota aumentou de 19% em 2020 para 42% em 2023. A Nigéria manteve-se como o principal fornecedor de gás para Portugal durante todo esse período, com a sua quota anual a oscilar entre 44% e 52%. Durante esse período, a dependência de Portugal em relação ao gás russo diminuiu de 14% em 2021 para 7% em 2024.
O papel da Nigéria na segurança energética de Portugal tem sido fundamental, embora com alguns problemas. Em 2022, a Nigéria enfrentou disrupções significativas devido a fortes inundações que, associadas à instabilidade política interna e aos riscos de segurança, nomeadamente insurreições e questões relativas às suas infraestruturas de gás, potenciaram mais tensões no mercado ibérico de gás. Apesar destes desafios, e também devido aos esforços políticos e diplomáticos de Portugal para garantir a realização dos envios contratados, a Nigéria conseguiu cumprir a maior parte dos compromissos sem afetar a estabilidade global do abastecimento.
Neste contexto, o GNL dos EUA tem-se tornado cada vez mais importante para o cabaz de gás e para a segurança energética da Península Ibérica, tendo as empresas do setor energético portuguesas e espanholas assinado na última década vários contratos de longo prazo com empresas norte-americanas. Embora seja fundamental para que a Europa se torne independente da energia russa, o GNL dos EUA poderá enfrentar obstáculos decorrentes, por um lado, da futura regulamentação da UE em matéria de emissões de metano, a qual afetará o gás de xisto de alta intensidade a partir de 2027, e, por outro lado, dos planos de descarbonização das empresas de energia ibéricas, das tensões comerciais e das divergências transatlânticas que possam comprometer futuros acordos de longo prazo.
A evolução do sistema energético: 2021-2024
Comparando 2023 (ano mais recente com dados disponíveis) com 2019 (valores pré-pandemia), em Portugal, o consumo de energia primária diminuiu 8%, com a eliminação progressiva do carvão e com reduções de 28% e 10% no gás natural e no petróleo, respetivamente. No mesmo período, a energia primária proveniente de energias renováveis registou um aumento de 20% [8]. Em consonância com o compromisso de descarbonização do setor elétrico (figura 5), Portugal encerrou todas as suas centrais a carvão em 2021.
Em 2022, a capacidade instalada de energias renováveis aumentou 2 gigawatt (GW), o maior aumento anual alguma vez registado, seguido de aumentos de 1,4 GW e 1,5 GW em 2023 e 2024, respetivamente. No total, entre 2021 e 2024, a capacidade instalada de energias renováveis aumentou mais de 30%, de 15,5 GW para 20,4 GW, impulsionada pela energia solar (3,4 GW) e hidroelétrica (1,2 GW). Simultaneamente, intensificaram-se os esforços de eletrificação, em especial nos transportes rodoviários.
A percentagem de veículos elétricos aumentou de 5% em 2020 para 18% em 2023. Observa-se uma tendência semelhante no mercado das bombas de calor, que registou um crescimento constante nos últimos anos, culminando num número recorde de vendas em 2022 e 2023.
Espanha seguiu uma trajetória semelhante, com o consumo de energia primária a diminuir cerca de 7 % entre 2019 e 2023. Esta redução foi impulsionada pela eliminação progressiva do carvão no setor da energia, pelos ganhos de eficiência em toda a economia e pelo encerramento de alguns complexos industriais devido à crise energética. A expansão das energias renováveis tem sido significativa, com um aumento da capacidade instalada superior a 25% entre 2021 e 2024.
A energia solar fotovoltaica liderou este crescimento, acrescentando mais de 10 GW, seguida da energia eólica, que acrescentou 4 GW, com impacto direto na composição do cabaz de eletricidade (figura 6). No entanto, a eletrificação continua a ser um desafio, uma vez que a adoção de bombas de calor e de veículos elétricos, embora em crescimento, é ainda relativamente baixa em comparação com os principais países europeus, incluindo Portugal.
A Península Ibérica avançou significativamente na sua transição energética, mantendo objetivos ambiciosos em matéria de energias renováveis e aumentando os esforços de eletrificação. No entanto, persistem desafios políticos e económicos.
Para atingir os objetivos estipulados nos planos nacionais português e espanhol em matéria de energia e clima, será necessário ultrapassar as dificuldades em matéria de infraestruturas – incluindo o desenvolvimento de nova rede elétrica, mas também uma utilização mais eficiente da infraestrutura existente –, investir no armazenamento e garantir o apoio público às medidas adotadas a nível nacional e local. Ao mesmo tempo, tanto Portugal como Espanha procuram capitalizar a industrialização verde, com as energias renováveis e o hidrogénio a dinamizarem a competitividade.
A presente secção debruça-se sobre as principais questões políticas que irão moldar o futuro energético da Península Ibérica.
O que revelam os planos ibéricos em matéria de energia e clima
O Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030), que foi revisto recentemente, reforçou os objetivos em matéria de energias renováveis, armazenamento e eficiência energética. O PNEC 2030 prevê que a procura de eletricidade aumente de cerca de 50 terawatt-hora (TWh) nos últimos anos para 90 TWh em 2030, impulsionada pela eletrificação setorial e pelo desenvolvimento da indústria verde. Prevê também uma quota de 93% para a eletricidade renovável em 2030, com a energia eólica, em terra e no mar, a contribuir com 40% e a energia solar a representar 42%.
Esta transformação exige o aumento significativo da capacidade instalada das energias renováveis, que deverá passar de 15 GW em 2020 para 44 GW em 2030. Igualmente importante é o papel do armazenamento, para o qual o PNEC 2030 define um objetivo de 2 GW para 2030, através da bombagem hidroelétrica e de baterias.
O Plano Nacional Integrado de Energia e Clima de Espanha (PNIEC 2030) tem sido criticado por ser demasiado ambicioso mas, tal como o PNEC 2030 de Portugal, estabelece um horizonte claro: rápida eletrificação da economia, maior percentagem de energias renováveis e abandono progressivo da energia nuclear. O PNIEC 2030 define objetivos ambiciosos e pretende que as energias renováveis atinjam uma quota de produção de 81% até 2030.
Embora a energia solar tenha registado um rápido crescimento, o desenvolvimento da energia eólica ainda não está no caminho certo. Os objetivos em matéria de implantação da rede de distribuição, de veículos elétricos e de armazenamento poderão revelar-se difíceis de alcançar, enquanto a eficácia da regulamentação sobre o armazenamento, com poucos incentivos para os investidores, suscita dúvidas.
Em Portugal e em Espanha, o setor das energias renováveis enfrenta cada vez mais desafios, devido à crescente canibalização dos preços de mercado, com baixos preços de captação e preços nulos ou mesmo negativos durante as horas solares a tornarem-se mais frequentes. Embora os níveis de corte de produção comercial e técnica permaneçam baixos, têm vindo a aumentar, devido à elevada penetração das energias renováveis.
Acresce que a oposição local à implementação das energias renováveis e à expansão da rede está a tornar-se cada vez mais complicada, com as comunidades a contestarem mais ativamente os novos projetos. Por isso, é necessário garantir que os benefícios das energias renováveis cheguem às populações locais – por exemplo, através de pagamentos únicos ou regulares associados à capacidade instalada e/ou mecanismos de partilha da eletricidade produzida com as comunidades locais. Este aspeto deve tornar-se prioritário para as autoridades e promotores, reconhecendo-se a importância de uma transição justa, não só para as regiões afetadas pelo abandono progressivo do carvão e da energia nuclear, mas também para aquelas onde as energias renováveis têm sido progressivamente introduzidas.
Portugal dispõe de legislação relativa aos mecanismos de compensação para os municípios afetados por projetos estratégicos de expansão da rede e por novos projetos de energias renováveis, embora subsistam desafios.
Outra questão controversa é o encerramento gradual das centrais nucleares espanholas entre o final de 2027 e 2035, na sequência de um plano acordado em 2019 entre o governo e as empresas que operam os reatores. O PNIEC 2030 espanhol permite que os encerramentos sejam suspensos caso esteja em risco a segurança do aprovisionamento energético, mas os primeiros encerramentos estão agendados para breve (2027 e 2028) e irão provavelmente avançar, apesar da crescente oposição pública e política.
Para que Espanha e Portugal cumpram os seus objetivos em termos de energias renováveis e eletrificação, têm de acelerar o desenvolvimento da rede, expandir as interligações transfronteiriças, aumentar a capacidade de armazenamento, melhorar a flexibilidade da procura, desenvolver mercados e mecanismos de capacidade e simplificar os licenciamentos – tudo isto mantendo o apoio da população através de um envolvimento local eficaz.
É de realçar que os ambiciosos objetivos climáticos de ambos os países contam com o apoio da generalidade do público. De acordo com as sondagens, os cidadãos portugueses e espanhóis apoiam fortemente a transição energética e a luta contra as alterações climáticas. Têm razões para isso: a Europa é o continente que está a aquecer mais rapidamente e os fenómenos climáticos extremos estão a tornar-se mais frequentes e mais intensos; o Sul da Europa é especialmente propenso a múltiplos riscos climáticos, incluindo secas, inundações mortais e incêndios florestais maciços.
A atitude da população ibérica representa um contributo importante para a transição energética europeia, sobretudo porque se traduz na adoção de medidas políticas em Portugal e Espanha, numa altura em que o apoio à ação climática está a diminuir noutros Estados-Membros.
O apagão na Península Ibérica em 2025
Na manhã de segunda-feira, 28 de abril de 2025, a Península Ibérica foi afetada por um grave corte de energia que atingiu todo o território de Portugal continental e de Espanha. O fornecimento de eletricidade foi interrompido durante cerca de dez horas na maior parte da península e durou ainda mais tempo em algumas zonas. O apagão causou graves perturbações nas telecomunicações, nos sistemas de transporte e em setores essenciais como os serviços de emergência.
Embora à data da redação do presente policy paper as causas deste acontecimento inédito ainda estejam a ser investigadas, os analistas sublinharam a necessidade urgente de acelerar as interligações transfronteiriças, reforçar a rede e a sua digitalização, reforçar os serviços de sistema e a flexibilidade da procura e avançar com a implementação de soluções de armazenamento com baixo teor de carbono, como baterias e centrais hidroelétricas. É também essencial que haja cooperação entre os operadores dos sistemas de ambos os países.
As interligações foram especialmente importantes na recuperação do sistema elétrico, graças aos fornecimentos francês e marroquino, mas o seu papel no apagão ainda está por determinar.
Uma vez que o foco principal deste documento é a geopolítica energética e que ainda há pouca informação fiável sobre o apagão, não procedemos aqui a uma avaliação detalhada deste incidente.
Interligações de hidrogénio e de eletricidade
Espanha e Portugal têm um sistema elétrico altamente integrado, o que facilita o funcionamento do mercado energético da Península Ibérica. Pelo contrário, as interligações entre a Península Ibérica e a Europa são diminutas, o que reforça a imagem da Península Ibérica como ilha energética no geoimaginário popular.
A integração elétrica entre Espanha e França é uma das mais baixas entre países vizinhos na UE, com uma capacidade de interligação de cerca de 2800 megawatt (MW). Por contraste, a capacidade total de interligação de França com cinco outros países europeus – Grã-Bretanha, Bélgica, Alemanha, Itália e Suíça – ascende a mais de 15 000 MW. Ao longo do tempo, esta integração assimétrica tem desencorajado França de investir, tanto económica como politicamente, nas suas interligações com Espanha.
Está em curso a criação de uma nova interligação submarina, através do Golfo da Biscaia, entre Espanha e França. Apesar de vários atrasos e derrapagens orçamentais, a sua entrada em funcionamento está agora prevista para 2027. Uma vez concluída, quase duplicará a capacidade de interligação, atingindo os 5000 MW, o que reforçará a complementaridade entre os sistemas elétricos franceses, com forte pendor nuclear, e os sistemas elétricos ibéricos, dominados pelas energias renováveis.
Há ainda propostas para instalar cabos através dos Pirenéus, as quais, porém, têm sofrido atrasos significativos, devido a preocupações ambientais, à complexidade do terreno e à falta de apoio do governo francês, o que torna improvável a sua concretização a breve trecho. A versão atualizada do PNIEC 2030 reconhece que as interligações através dos Pirenéus não estarão operacionais até 2030.
Espanha e Portugal estão também a trabalhar para criar novas interligações que acompanhem a evolução do mercado e reforcem a segurança do aprovisionamento. Está planeada uma nova interligação entre o Minho (Ponte de Lima) e a Galiza (Fontefría). Uma vez concluída, esta aumentará a capacidade de interligação em cerca de 1000 MW, atingindo um total de 4200 MW de capacidade de exportação de Espanha para Portugal e de 3500 MW de Portugal para Espanha.
Estão a ser estudados outros corredores de eletricidade. O Mediterranean Solar Bridge é um cabo submarino de alta tensão, em corrente contínua, com capacidade de 2 GW, que pretende ligar Espanha e Itália para facilitar o intercâmbio de energias renováveis, mas o projeto enfrenta desafios regulamentares significativos e custos elevados.
A Península Ibérica tem também procurado envolver Marrocos. Desde o encerramento do GEM, Espanha tem sido um exportador líquido de eletricidade para Marrocos, cujo sistema elétrico também beneficia da sincronização com o da Europa. O plano espanhol prevê a construção de uma terceira interligação elétrica com Marrocos, através da qual, a curto prazo, as energias renováveis ibéricas serão exportadas para Marrocos, e não o contrário. Só a longo prazo, quando se aproximar da descarbonização do seu cabaz de eletricidade (atualmente composto por apenas 20% de energias renováveis), é que Marrocos conseguirá mitigar o impacto dos custos do mecanismo de ajustamento carbónico fronteiriço da UE nas suas exportações de eletricidade e tornar-se competitivo no mercado energético europeu.
Marrocos e Portugal estão também a ponderar a criação de uma interligação de 1 GW (possivelmente como alternativa à nova interligação Marrocos-Espanha), que seria a primeira ligação direta entre os dois países. As interligações transfronteiriças de longa distância estão também a ser pensadas por agentes privados do mercado (por exemplo, Marrocos–Reino Unido, através da costa portuguesa), embora subsistam obstáculos tecnológicos e administrativos.
Em outubro de 2022, Portugal, Espanha e França concordaram em desenvolver novas interligações para hidrogénio, principalmente através do gasoduto H2Med. O projeto, que inclui uma ligação entre Portugal e Espanha (Celorico da Beira–Zamora) e se estende por Portugal (através dos chamados enablers, que ligam a rede principal a projetos industriais que produzem hidrogénio verde no país), visa integrar o mercado de hidrogénio da Península Ibérica na vasta rede europeia.
A iniciativa suscitou o interesse de outros países europeus, nomeadamente da Alemanha, que manifestou um forte apoio político ao alargamento da infraestrutura para além de França. No entanto, dado o estado atual do setor do hidrogénio renovável, o futuro do gasoduto e, especialmente, o seu prazo de conclusão, inicialmente previsto para 2030, permanece incerto e é provável que sofra atrasos.
Na Península Ibérica, há portos importantes – como Algeciras, Huelva, Bilbau (Espanha) e Sines (Portugal) – que estão a desenvolver projetos de grande escala para exportar derivados do hidrogénio, como o amoníaco verde, o metanol e os combustíveis sintéticos, para o Norte da Europa, em especial para a Alemanha, os Países Baixos e a Bélgica. Estas iniciativas visam reabilitar os complexos industriais existentes, incluindo refinarias e fábricas de fertilizantes, bem como criar novos centros de abastecimento de combustível com baixo teor de carbono.
Tal como acontece com as exportações de eletricidade renovável, na Península Ibérica, o hidrogénio envolve um notório dilema: optar por exportá-lo ou utilizá-lo para promover a modernização industrial e a descarbonização da própria Península. A resposta a este dilema tem de ser bem ponderada, porque as interligações de eletricidade e hidrogénio necessárias para a exportação não estão ainda feitas e levarão anos a desenvolver. Entretanto, e como é habitual, a Península Ibérica teria de seguir uma estratégia mais voltada para dentro, recorrendo às suas abundantes fontes renováveis, por ora não exportáveis, para ganhar competitividade nas indústrias descarbonizadas (ver abaixo).
Durante quanto tempo a Península Ibérica irá manter-se como uma ilha de energias renováveis dentro da UE é uma questão que depende dos projetos de interligação através dos Pirenéus ou de outras alternativas (normalmente mais dispendiosas, embora os avanços tecnológicos possam alterar este cenário).
Os relatórios Letta e Draghi defendem uma rápida integração física e normativa dos mercados energéticos da UE, criando-se uma união energética funcional, capaz de promover a competitividade europeia e a segurança energética. Entretanto, a inexistência de interligações energéticas protege naturalmente a indústria ibérica: à medida que as energias renováveis continuam a bater recordes de produção, Portugal e Espanha dispõem de energia verde a preços competitivos, o que atrai as indústrias. Ao mesmo tempo, os preços baixos podem limitar os incentivos a mais investimento em energias renováveis, e as questões relativas ao acesso à rede e outros obstáculos regulamentares e de licenciamento podem também atrasar a sua adoção.
Para assegurar a estabilidade e a previsibilidade, mantendo simultaneamente os incentivos ao investimento, é essencial reformar o mercado da eletricidade no contexto da UE, com enfoque em contratos a longo prazo (contratos de aquisição de energia e contratos por diferença), numa revisão dos preços marginais, no desenvolvimento de mercados de capacidade e de mecanismos de procura flexível.
Rumo a uma industrialização verde na Península Ibérica
A abordagem ibérica à transição energética está em total alinhamento com as prioridades da UE. Portugal e Espanha contam-se entre os Estados-Membro que mais valorizam a União Europeia e sempre defenderam uma maior integração energética com a Europa. A estreita colaboração ibérica no domínio da transição energética que se tem verificado nos últimos anos contribui para consolidar a posição da Península como um dos principais polos industriais verdes da Europa. A descarbonização representa também uma grande oportunidade para a Península Ibérica, que beneficia de uma combinação única de energia verde competitiva, matérias-primas essenciais e uma base industrial forte.
Os futuros preços da energia evidenciam ainda mais esta competitividade, sendo que se prevê que o mercado ibérico de eletricidade seja um dos mais económicos da Europa nos próximos anos. Além disso, a complementaridade das fontes renováveis (solar, eólica e hídrica) também garante a estabilidade do fornecimento de energia verde, o que é uma vantagem competitiva adicional.
No que diz respeito ao hidrogénio renovável, a abordagem ibérica evoluiu em função de vários fatores económicos e geopolíticos. Em Espanha, o hidrogénio renovável foi inicialmente enquadrado como uma ferramenta para o desenvolvimento industrial pós-COVID-19, mas a invasão da Ucrânia pela Rússia e o Plano REPowerEU da Comissão Europeia levaram a uma transição estratégica para o hidrogénio verde. Inicialmente, Portugal considerou o hidrogénio verde como um novo produto de exportação, dada a competitividade dos produtores portugueses em termos de custos, mas rapidamente passou a uma abordagem industrial estratégica que procura utilizar o hidrogénio verde nas suas indústrias difíceis de descarbonizar e atrair novas indústrias.
Consequentemente, tanto Espanha como Portugal aumentaram as suas metas para 2030 relativas à capacidade de eletrólise, de 4 GW para 11 GW e de 2,5 GW para 3 GW, respetivamente. Como parte de uma tendência global no setor do hidrogénio, por razões comerciais e técnicas, é pouco provável que estas metas sejam plenamente atingidas; no entanto, são um forte sinal político de ambição. Para garantir uma rápida implementação de novos projetos de hidrogénio, Portugal criou um quadro regulamentar simplificado e leiloou contratos públicos de longo prazo para agilizar o arranque da indústria.
Ambos os países pretendem começar a substituir o hidrogénio cinzento, que é produzido a partir do gás natural, nas indústrias de refinação e química, atraindo simultaneamente investimentos em processos industriais com baixo teor de carbono, como o aço verde, o amoníaco e os combustíveis sintéticos.
Na Europa, Portugal e Espanha lideram em termos de capacidade renovável recentemente instalada e na assinatura de contratos de aquisição de capacidade de produção. Estão também a atrair indústrias eletrointensivas e de tecnologias limpas, incluindo indústrias da economia digital.
Além disso, ambos os países desempenham papéis estratégicos na cadeia de valor das tecnologias limpas na Europa. Portugal e Espanha pretendem aproveitar as suas significativas reservas de lítio para atrair investimentos em toda a cadeia de valor – desde a refinação até às baterias e à reciclagem, centrando-se simultaneamente em estratégias locais que garantam benefícios para as comunidades onde os projetos se situam. Ao avançar para estes segmentos de elevado valor, a ambição é desbloquear mais benefícios económicos, criar empregos qualificados e reforçar a importância de ambos os países no âmbito da autonomia estratégica europeia e das cadeias de valor de baixo teor de carbono.
Uma das principais vantagens competitivas compartilhadas por Portugal e Espanha é a sua mão de obra altamente qualificada em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM, no acrónimo em inglês). Portugal tem uma das percentagens mais elevadas de licenciados em STEM entre os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico e países parceiros, tendo atraído vários serviços e centros de engenharia para o país nos últimos anos.
Os engenheiros espanhóis são também reconhecidos internacionalmente pela sua competência, e estão na base de um setor privado sólido no campo das energias renováveis, com empresas de serviços energéticos globais, promotores de projetos e empresas líderes em operação e manutenção de eólicas. Portugal e Espanha também beneficiam de infraestruturas bem desenvolvidas, incluindo portos de águas profundas e redes de gás modernas, pelo que estão mais bem preparados do que outros concorrentes económicos para a integração do hidrogénio.
As crescentes rivalidades geopolíticas têm vindo a alterar a geoeconomia das cadeias de abastecimento industrial. Enquanto o nearshoring e o friendshoring [9] têm como objetivo evitar ruturas de abastecimento, promovendo a integração com vizinhos e aliados, respetivamente, os recursos renováveis abundantes (e complementares) oferecem oportunidades para o powershoring: o processo de deslocalização da indústria para países com uma produção de energia renovável competitiva e fiável. Quando envolve uma via de descarbonização aberta e competitiva, bem como a sustentabilidade socioambiental, faz mais sentido designar esta estratégia por greenshoring. O Pacto da Indústria Limpa, publicado em fevereiro de 2025 pela Comissão Europeia, no seguimento do Relatório Draghi, está em perfeito alinhamento com a estratégia ibérica. Por serem pioneiros na transição energética, Portugal e Espanha podem também beneficiar rapidamente dos novos requisitos de conteúdo europeu em produtos.
Por último, Portugal e Espanha estão totalmente alinhados com o trajeto europeu de descarbonização, tanto no que diz respeito à ação interna como externa. Relativamente a esta última, ambos os países apoiam a versão mais flexível da Autonomia Estratégica Aberta da UE, privilegiando o regionalismo e o multilateralismo abertos. Estas preferências aplicam-se, em especial, aos países vizinhos do Mediterrâneo, à África, à América Latina e às Caraíbas, com ambos os países a defenderem que a UE adote uma abordagem aberta da descarbonização (por exemplo, através do Global Gateway).
Estas regiões têm um grande potencial inexplorado de produção de energias renováveis e fornecem fatores de produção fundamentais para as economias europeias – desde petróleo e gás até aos minerais críticos –, razão pela qual as empresas portuguesas e espanholas têm investido fortemente nos seus setores energéticos (em alguns casos, beneficiando da facilidade de comunicação decorrente de uma língua em comum).
A partir das aprendizagens e oportunidades que resultaram da transição energética em curso em Portugal e Espanha – e no contexto das tensões geopolíticas e das consequentes respostas políticas adotadas pela UE – as conclusões deste policy paper sobre o mercado energético pós-crise podem ser resumidas da seguinte forma:
- Os cidadãos portugueses e espanhóis preocupam-se com as alterações climáticas e, de um modo geral, estão abertos e recetivos à transição energética, encarando-a também como uma oportunidade económica. Este facto proporciona uma vantagem competitiva para tirar partido das oportunidades industriais de caráter ecológico existentes e emergentes. No entanto, para prosseguir caminho rumo à transição energética e climática, devem ser reforçados os mecanismos de envolvimento das comunidades locais, com uma comunicação clara ex ante e ex post e com a partilha de benefícios económicos.
- Portugal e Espanha estão preparados para beneficiar económica e geopoliticamente da transição energética, graças aos recursos renováveis de classe mundial, aos conhecimentos técnicos e à existência de instituições fortes. Embora possam não atingir todas as suas ambiciosas metas, o PNEC 2030 português e o PNIEC 2030 espanhol definem um rumo claro, centrado na eletrificação e nas energias renováveis, e fornecem sinais claros aos participantes nos mercados. Tanto para Portugal como para Espanha, a transição energética é uma oportunidade industrial, impulsionada pelo nearshoring e pelo greenshoring num modelo de descarbonização aberta. As medidas políticas devem continuar a abordar as principais dificuldades, nomeadamente a disponibilidade da rede, a previsibilidade dos procedimentos administrativos e de licenciamento, os incentivos aos investidores, os mecanismos de formação de preços e a aceitabilidade local.
- O mercado energético da Península Ibérica não está suficientemente interligado com França e com o resto da UE. Os projetos em curso continuam a ser insuficientes para cumprir os objetivos de interligação da UE, limitando o papel da Península Ibérica na segurança energética europeia e nos esforços de descarbonização. Com uma maior capacidade de interligação, os países ibéricos poderiam ter contribuído mais para superar a crise energética. No futuro, este elemento de segurança — além da dimensão económica — deve ser cuidadosamente ponderado pelos decisores políticos e pelos atores políticos.
- A dependência energética inicial da Península Ibérica em relação à Rússia era baixa, mas a alteração das dinâmicas do mercado energético, bem como outros fatores, como a seca e a geopolítica do Norte de África, tiveram impacto na sua segurança energética. Prevê-se que, caso a UE consiga implementar medidas coordenadas, as importações de GNL russo, associadas a contratos antigos de longo prazo, sejam gradualmente eliminadas até 2027, o que reforçará o papel da Península Ibérica como porta de entrada do GNL dos EUA na UE. A longo prazo, o desenvolvimento de um mercado de hidrogénio verde na UE contribuirá também para diversificar as fontes e os locais de origem da energia. Nessa matéria, Portugal e Espanha poderão desempenhar um papel central, dadas as suas vantagens competitivas na produção de hidrogénio verde.
Notas dos autores:
[1] Nearshoring refere-se à estratégia empresarial de transferência de operações de negócios para países geograficamente mais próximos.
[2] Greenshoring refere-se à estratégia empresarial de transferência de operações de negócios para países que adotam práticas ambientais mais sustentáveis.
[3] Nesta análise, a crise energética é definida como o processo iniciado no outono de 2021 e que conduziu a preços da energia historicamente elevados na Europa – em especial, embora não exclusivamente, no que se refere ao gás natural e à eletricidade. As causas desta crise, que são detalhadas em seguida, vão desde as tensões geopolíticas decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia até à grave seca que afetou todo o continente.
[4] Em Portugal, o encerramento das duas últimas centrais a carvão ocorreu em 2021.
[5] De acordo com os dados da Eurostat mais recentes, em 2024, as energias renováveis representaram 88% da produção de eletricidade em Portugal, enquanto em Espanha as energias renováveis representaram 56%, a que se somou 20% de energia nuclear.
[6] Estes valores incluem tanto a energia primária como as necessidades energéticas para a transformação de energia.
[7] Para compreender o funcionamento do Mecanismo Ibérico e o seu efeito estimado no mercado grossista de eletricidade, ver, por exemplo, Manuel Hidalgo-Pérez et al., «The Iberian exception: Estimating the impact of a cap on gas prices for electricity generation on consumer prices and market dynamics», Energy Policy 188, n.º 2 (maio de 2024): 114092, https://doi.org/10.1016/j.enpol.2024.114092.
[8] A transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, como a eólica e a solar, reduz o consumo de energia primária, porque estas fontes não envolvem perdas de conversão. Consequentemente, quando as energias renováveis substituem o carvão ou o gás natural, o consumo de energia primária diminui, mesmo que a produção final de energia permaneça inalterada.
[9] Friendshoring refere-se à estratégia empresarial de transferência de operações de negócios para países aliados.


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